Folha de S.Paulo

Prisão de acusados por terrorismo tem de assassinat­o a greve de fome

Detidos em operação deflagrada às vésperas da Olimpíada aguardam há nove meses pela sentença

- FABIO VICTOR

Defensora aponta abusos em investigaç­ão e processo; para PF e Justiça, todos os atos estão amparados na lei

Nove meses após ter sido deflagrada a Operação Hashtag, que prendeu 13 suspeitos de terrorismo em julho de 2016, às vésperas da Olimpíada do Rio, quatro réus continuam detidos preventiva­mente na Penitenciá­ria Federal de Campo Grande (MS) à espera de sentença.

Um deles, Leonid El Kadre de Melo, 33, está em greve de fome há 25 dias em protesto pela indefiniçã­o do caso. Quem faz sua defesa no processo é a mãe, a advogada Zaine El Kadri, 57.

Outro suspeito, Valdir Pereira da Rocha, irmão de Leonid e filho de Zaine, contra quem nem o Ministério Público nem a Justiça viram elementos para que continuass­e preso, recebeu alvará de soltura dois meses após ser detido.Permaneceu­atrásdasgr­ades porque, com a prisão na operação antiterror­ismo, teve endurecime­nto de regime em outra condenação, por assalto e homicídio, na qual progredira ao semiaberto por já ter cumprido parte da pena.

Transferid­o para um presídio estadual em Mato Grosso, foi morto por outros detentos, por espancamen­to e golpes de barra de ferro.

O inquérito sobre a morte de Valdir acaba de ser concluído pela Polícia Civil matogrosse­nse. Dezenas de presos da Cadeia Pública de Várzea Grande participar­am do linchament­o, mas quatro —o que deu a ordem, o principal executor e dois que quebraram um cadeado— foram indiciados sob acusação de homicídio duplamente qualificad­o (por motivo fútil e sem chance de defesa da vítima).

Conforme o inquérito, Val- dir foi morto porque seus agressores acreditava­m que ele era terrorista.

“A versão de todos os detentos é que o crime foi cometido porque ele seria terrorista e que terrorista derrama sangue inocente, por isso não era para ele estar ali”, disse o delegado Marcelo Jardim, que presidiu o inquérito.

Na época da morte, em outubro passado, o então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes (hoje ministro do Supremo), isentou o governo de responsabi­lidade ao alegar que a morte fora em um presídio estadual: “Não era mais a nossa competênci­a a fiscalizaç­ão do preso e aí lamentavel­mente em uma briga de detentos ele acabou falecendo”.

Segundo o inquérito, não houve briga, mas assassinat­o. LEI NOVA A morte de Valdir, sob a custódia do Estado e atribuída a um crime pelo qual ele nem chegou a ser denunciado, é um dos inúmeros episódios que ficaram à sombra das imagens espetaculo­sas que correram o país quando a operação foi a campo.

Dos 13 presos em julho de 2016, a Justiça aceitou denúncia contra oito, acusados principalm­ente de promoção de organizaçã­o terrorista e de associação criminosa —o primeiro crime está previsto na Lei Antiterror­ismo. A denúncia da operação Hashtag foi a primeira oferecida no país com base nesta lei, promulgada no ano passado.

Segundo o inquérito da Polícia Federal, os suspeitos usavam redes sociais e aplicativo­s de celular para fazer apologia ao Estado Islâmico e planejavam atentados no Brasil durante a Olimpíada.

Além de Leonid, permanecem presos na Penitenciá­ria de Campo Grande Alisson Luan de Oliveira, 19, Fernando Pinheiro Cabral, 23, e Luis Gustavo de Oliveira, 27.

Os quatro são muçulmanos. Ao chegarem, receberam um exemplar do Alcorão e, segundo a direção do presídio, têm respeitada­s suas restrições alimentare­s (não lhes é servido porco, por exemplo). Como em outras unidades do Sistema Penitenciá­rio Federal, as celas são individuai­s, as regras são rígidas e o isolamento é grande —ficam sozinhos na cela em média 20 horas por dia e têm duas horas de banho de sol.

Nesse sistema, greves de fome são comuns. Alisson, Fernando e Luis Gustavo também fizeram as suas, para cobrar a agilização do processo, mas duraram só três dias.

Também há revolta com a regra de que todos os detentosde­vemraspara­barba,considerad­a abusiva pelos muçulmanos, pois sua religião encoraja que se as cultive.

Leonid foi transferid­o para uma cela no setor de saúde da penitenciá­ria. Segundo a mãe, desde o início da greve de fome ele perdeu 13 kg — foi de 84 kg para 71 kg.

O diretor do presídio, Rodrigo Almeida Morel, disse que, como com qualquer outro detento, no caso de Leonid tem sido seguido o protopelo colo do CNPP (Conselho Nacional de Política Penitenciá­ria) para greve de fome, que prevê acompanham­ento médico e psicólogo e fixa diretrizes éticas para lidar com o preso nessa condição (não pressioná-lo a interrompe­r a greve, por exemplo). APOLOGIA Até hoje não foi apurada a ligação dos réus da Hashtag com grupos extremista­s. Tampouco havia plano concreto de uma ação terrorista.

Mas a maioria deles de fato fazia apologia do Estado Islâmico, publicando fotos e vídeos de execuções e glorifican­do os dogmas e ataques do grupo. Vários mencionara­m o desejo de cometer atentados contra “infiéis”, planejaram comprar armas e se reunir e um deles publicou uma receita de bomba.

A defensora pública Rita Cristina de Oliveira, que defende a maioria dos réus —incluindo Alisson, Fernando e Luis Gustavo—, alega que os três são jovens com pouca vida social e fechados na internet, que se deixaram atrair

DAVID AZEVEDO

advogado criminalis­ta

RITA CRISTINA DE OLIVEIRA

defensora pública fetiche de organizaçõ­es extremista­s, mas não representa­m risco à sociedade.

Argumenta que o tempo de prisão preventiva é excessivo e aponta abusos no processo, como depoimento­s iniciais sem presença de defensor nem audiência de custódia.

Já acompanhad­os por defensor, Valdir e outros detentos afirmaram que, nos primeiros depoimento­s, desacompan­hados, foram pressionad­os e coagidos por delegados da Polícia Federal.

A PF refuta a acusação e diz que “sempre atua com a observânci­a aos direitos e garantias dos cidadãos”. ARTIGO VETADO A defensora também questiona a tipificaçã­o de “promoção de organizaçã­o terrorista”. Lembra que “apologia ao terrorismo” —o que acredita ter havido— constava de um artigo da Lei Antiterror­ismo vetado pela então presidente Dilma Rousseff em 2016.

Nos autos, o juiz Marcos Josegrei da Silva, titular da 14ª Vara Federal de Curitiba, defende a adequação do tipo penal e a legalidade de todos os atos do processo.

Dois criminalis­tas que examinaram o processo, David Azevedo e Gustavo Neves Forte, disseram não ver exagero no tempo de prisão. Um terceiro, Alberto Toron, considerou em tese (por não acompanhar o caso específico) “um abuso” a prisão preventiva alcançar nove meses.

Os quatros réus continuarã­o presos aguardando julgamento de um habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça ou a sentença do juiz Josegrei, que deve sair em breve.

A defensora Rita Cristina de Oliveira se disse pessimista. “Gostaria muito de ver a Justiça reconhecer seus erros e aprender com esse episódio. Mas o resultado tende a legitimar a investigaç­ão policial e seus exageros e justificar essa prisão por tanto tempo.” Alisson Luan de Oliveira, 19 Saquarema (RJ)

promoção de organizaçã­o terrorista, associação criminosa, corrupção de menores

admitiu ter feito apologia a organizaçõ­es extremista­s, mas disse ser contra atentados no Brasil; aponta abusos no processo Fernando P. Cabral, 23 São Paulo (SP) promoção de organizaçã­o terrorista, associação criminosa nega acusações e aponta abusos no processo Leonid El Kadre de Melo, 33

Vila Bela da Santíssima Trindade (MT)

promoção de organizaçã­o terrorista, recrutamen­to para organizaçã­o terrorista, associação criminosa, corrupção de menores

nega ser autor das postagens e ter recrutado militantes; aponta abusos no processo

Acho muito pouco provável que cometessem um ataque terrorista na Olimpíada. Já que montavam uma célula terrorista no Brasil, acho praticamen­te certo

Luis G. de Oliveira, 27

São José dos Campos (SP)

“O fato é que ele [Valdir] morreu sob a custódia do Estado, o que não teria ocorrido se não tivesse sido preso na operação”

promoção de organizaçã­o terrorista, associação criminosa, corrupção de moenores

diz que post com receita de bomba era brincadeir­a; aponta abusos no processo

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Zaine El Kadri, mãe e advogada de um dos réus, na Penitenciá­ria de Campo Grande
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Arquivo Pessoal Valdir Pereira da Rocha, suspeito morto na cadeia

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