Prisão de acusados por terrorismo tem de assassinato a greve de fome
Detidos em operação deflagrada às vésperas da Olimpíada aguardam há nove meses pela sentença
Defensora aponta abusos em investigação e processo; para PF e Justiça, todos os atos estão amparados na lei
Nove meses após ter sido deflagrada a Operação Hashtag, que prendeu 13 suspeitos de terrorismo em julho de 2016, às vésperas da Olimpíada do Rio, quatro réus continuam detidos preventivamente na Penitenciária Federal de Campo Grande (MS) à espera de sentença.
Um deles, Leonid El Kadre de Melo, 33, está em greve de fome há 25 dias em protesto pela indefinição do caso. Quem faz sua defesa no processo é a mãe, a advogada Zaine El Kadri, 57.
Outro suspeito, Valdir Pereira da Rocha, irmão de Leonid e filho de Zaine, contra quem nem o Ministério Público nem a Justiça viram elementos para que continuasse preso, recebeu alvará de soltura dois meses após ser detido.Permaneceuatrásdasgrades porque, com a prisão na operação antiterrorismo, teve endurecimento de regime em outra condenação, por assalto e homicídio, na qual progredira ao semiaberto por já ter cumprido parte da pena.
Transferido para um presídio estadual em Mato Grosso, foi morto por outros detentos, por espancamento e golpes de barra de ferro.
O inquérito sobre a morte de Valdir acaba de ser concluído pela Polícia Civil matogrossense. Dezenas de presos da Cadeia Pública de Várzea Grande participaram do linchamento, mas quatro —o que deu a ordem, o principal executor e dois que quebraram um cadeado— foram indiciados sob acusação de homicídio duplamente qualificado (por motivo fútil e sem chance de defesa da vítima).
Conforme o inquérito, Val- dir foi morto porque seus agressores acreditavam que ele era terrorista.
“A versão de todos os detentos é que o crime foi cometido porque ele seria terrorista e que terrorista derrama sangue inocente, por isso não era para ele estar ali”, disse o delegado Marcelo Jardim, que presidiu o inquérito.
Na época da morte, em outubro passado, o então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes (hoje ministro do Supremo), isentou o governo de responsabilidade ao alegar que a morte fora em um presídio estadual: “Não era mais a nossa competência a fiscalização do preso e aí lamentavelmente em uma briga de detentos ele acabou falecendo”.
Segundo o inquérito, não houve briga, mas assassinato. LEI NOVA A morte de Valdir, sob a custódia do Estado e atribuída a um crime pelo qual ele nem chegou a ser denunciado, é um dos inúmeros episódios que ficaram à sombra das imagens espetaculosas que correram o país quando a operação foi a campo.
Dos 13 presos em julho de 2016, a Justiça aceitou denúncia contra oito, acusados principalmente de promoção de organização terrorista e de associação criminosa —o primeiro crime está previsto na Lei Antiterrorismo. A denúncia da operação Hashtag foi a primeira oferecida no país com base nesta lei, promulgada no ano passado.
Segundo o inquérito da Polícia Federal, os suspeitos usavam redes sociais e aplicativos de celular para fazer apologia ao Estado Islâmico e planejavam atentados no Brasil durante a Olimpíada.
Além de Leonid, permanecem presos na Penitenciária de Campo Grande Alisson Luan de Oliveira, 19, Fernando Pinheiro Cabral, 23, e Luis Gustavo de Oliveira, 27.
Os quatro são muçulmanos. Ao chegarem, receberam um exemplar do Alcorão e, segundo a direção do presídio, têm respeitadas suas restrições alimentares (não lhes é servido porco, por exemplo). Como em outras unidades do Sistema Penitenciário Federal, as celas são individuais, as regras são rígidas e o isolamento é grande —ficam sozinhos na cela em média 20 horas por dia e têm duas horas de banho de sol.
Nesse sistema, greves de fome são comuns. Alisson, Fernando e Luis Gustavo também fizeram as suas, para cobrar a agilização do processo, mas duraram só três dias.
Também há revolta com a regra de que todos os detentosdevemrasparabarba,considerada abusiva pelos muçulmanos, pois sua religião encoraja que se as cultive.
Leonid foi transferido para uma cela no setor de saúde da penitenciária. Segundo a mãe, desde o início da greve de fome ele perdeu 13 kg — foi de 84 kg para 71 kg.
O diretor do presídio, Rodrigo Almeida Morel, disse que, como com qualquer outro detento, no caso de Leonid tem sido seguido o protopelo colo do CNPP (Conselho Nacional de Política Penitenciária) para greve de fome, que prevê acompanhamento médico e psicólogo e fixa diretrizes éticas para lidar com o preso nessa condição (não pressioná-lo a interromper a greve, por exemplo). APOLOGIA Até hoje não foi apurada a ligação dos réus da Hashtag com grupos extremistas. Tampouco havia plano concreto de uma ação terrorista.
Mas a maioria deles de fato fazia apologia do Estado Islâmico, publicando fotos e vídeos de execuções e glorificando os dogmas e ataques do grupo. Vários mencionaram o desejo de cometer atentados contra “infiéis”, planejaram comprar armas e se reunir e um deles publicou uma receita de bomba.
A defensora pública Rita Cristina de Oliveira, que defende a maioria dos réus —incluindo Alisson, Fernando e Luis Gustavo—, alega que os três são jovens com pouca vida social e fechados na internet, que se deixaram atrair
DAVID AZEVEDO
advogado criminalista
RITA CRISTINA DE OLIVEIRA
defensora pública fetiche de organizações extremistas, mas não representam risco à sociedade.
Argumenta que o tempo de prisão preventiva é excessivo e aponta abusos no processo, como depoimentos iniciais sem presença de defensor nem audiência de custódia.
Já acompanhados por defensor, Valdir e outros detentos afirmaram que, nos primeiros depoimentos, desacompanhados, foram pressionados e coagidos por delegados da Polícia Federal.
A PF refuta a acusação e diz que “sempre atua com a observância aos direitos e garantias dos cidadãos”. ARTIGO VETADO A defensora também questiona a tipificação de “promoção de organização terrorista”. Lembra que “apologia ao terrorismo” —o que acredita ter havido— constava de um artigo da Lei Antiterrorismo vetado pela então presidente Dilma Rousseff em 2016.
Nos autos, o juiz Marcos Josegrei da Silva, titular da 14ª Vara Federal de Curitiba, defende a adequação do tipo penal e a legalidade de todos os atos do processo.
Dois criminalistas que examinaram o processo, David Azevedo e Gustavo Neves Forte, disseram não ver exagero no tempo de prisão. Um terceiro, Alberto Toron, considerou em tese (por não acompanhar o caso específico) “um abuso” a prisão preventiva alcançar nove meses.
Os quatros réus continuarão presos aguardando julgamento de um habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça ou a sentença do juiz Josegrei, que deve sair em breve.
A defensora Rita Cristina de Oliveira se disse pessimista. “Gostaria muito de ver a Justiça reconhecer seus erros e aprender com esse episódio. Mas o resultado tende a legitimar a investigação policial e seus exageros e justificar essa prisão por tanto tempo.” Alisson Luan de Oliveira, 19 Saquarema (RJ)
promoção de organização terrorista, associação criminosa, corrupção de menores
admitiu ter feito apologia a organizações extremistas, mas disse ser contra atentados no Brasil; aponta abusos no processo Fernando P. Cabral, 23 São Paulo (SP) promoção de organização terrorista, associação criminosa nega acusações e aponta abusos no processo Leonid El Kadre de Melo, 33
Vila Bela da Santíssima Trindade (MT)
promoção de organização terrorista, recrutamento para organização terrorista, associação criminosa, corrupção de menores
nega ser autor das postagens e ter recrutado militantes; aponta abusos no processo
“
Acho muito pouco provável que cometessem um ataque terrorista na Olimpíada. Já que montavam uma célula terrorista no Brasil, acho praticamente certo
Luis G. de Oliveira, 27
São José dos Campos (SP)
“O fato é que ele [Valdir] morreu sob a custódia do Estado, o que não teria ocorrido se não tivesse sido preso na operação”
promoção de organização terrorista, associação criminosa, corrupção de moenores
diz que post com receita de bomba era brincadeira; aponta abusos no processo