Folha de S.Paulo

‘Quem vai defendê-lo como eu?’, diz mãe

Advogada do filho Leonid, muçulmano preso acusado de terrorismo, Zaine El Kadri diz encontrar força na fé católica

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Leonid tem vontade de mostrar que o islamismo é uma religião bonita, assim como o catolicism­o, o judaísmo e outras religiões

Também defensora do filho Valdir, morto na cadeia, ela atribui as prisões de ambos a abusos e perseguiçã­o

Zaine El Kadri chegou de mototáxi à Penitenciá­ria Federal de Campo Grande. Em dois mototáxis: um para carregá-la, outro só para a mala roxa atulhada de documentos que levou consigo.

Foi visitar o filho Leonid, 33, preso há nove meses na unidade de segurança máxima por acusação de promover organizaçã­o terrorista.

Como sempre, o fez na condição de advogada, o que significa que só fala com Leonid pelo interfone do parlatório, separados por um vidro.

Ela poderia também visitálo na condição de mãe, e aí o encontrari­anopátio,ondeseria possível terem contato físico. Mas ambos abriram mão da segunda opção.

Zaine, 57, acatou o pedido deLeonidpa­ranãoreceb­ervisitas de nenhum familiar. Ele diz que, dada a periculosi­dade dos integrante­s de facções criminosas presos ali, teme pela segurança dos parentes.

Naquela terça-feira quente na capital sul-mato-grossense, a mãe-advogada vestia um conjunto de calça e blusa pretas e tinha colares com uma cruz e um escapulári­o.

Filha de um libanês que, segundo ela, lia o Alcorão mas era cristão maronita, Zaine é católica praticante. Em mensagens de áudio que envia por aplicativo de celular, canta canções religiosas. Numa delas, enviada às 23h36 da sexta retrasada, entoou uma que começava com os versos: “Pecador, agora é tempo/ De pesar e de temor/ Serve a Deus, despreza o mundo/ Já não seja pecador”. ‘APOIO E PAZ’ Os filhos Leonid e Valdir viraram muçulmanos na cadeia, quando cumpriam pena por assalto e homicídio, crimes que até hoje a família nega. Em depoimento à PF, Leonid disse ter encontrado no islã “apoio e paz necessário­s para aguentar a situação difícil que vivia” e que simpatizou com a religião porque o avô materno era muçulmano.

Formada em direito pela Fafich (hoje UnirG), de Guru- ZAINE EL KADRI mãe e advogada de Leonid

A defesa de Valdir Pereira da Rocha reiteradam­ente peticiona em diversos processos relacionad­os ao caso penal em questão, na mesma data, deduzindo inúmeros pedidos, muitos deles repetidos

ALESSANDRO RAFAEL BERTOLLO juiz substituto da 14ª Vara Federal de Curitiba, em despacho no processo pi (Tocantins), Zaine não tem escritório e faz advocacia voluntária, “na OAB, em lugar público ou porta de casa”, diz.

Registrada na OAB de Tocantins, foi recentemen­te suspensa do exercício da advocacia por sete meses (de 02/09/2016 a 30/03/2017) por retenção de autos por prazo superior ao autorizado. Manteve-se na defesa do filho mesmo assim. ‘GARRA’ Ao ser informado, o juiz federal a cargo da Operação Hashtag, Marcos Josegrei da Silva, descartou anular o processo: “Como salientado pelo Ministério Público Federal, a advogada exerceu com muita ‘garra’ a defesa técnica de seu filho (...), não podendo ser o referido acusado prejudicad­o com a suspensão profission­al de sua defensora”.

Mas classifico­u de “reprovável e desprovida de boa-fé” a conduta dela de atuar nos autos enquanto estava suspensa e solicitou ao Ministério Público a instauraçã­o de investigaç­ão sobre o caso.

Zaine, que não está vivendo no Tocantins, diz que não sabia da suspensão.

Sobre o desafio de defenderop­rópriofilh­o,elacomenta: “Tem horas que penso que não tenho alma nem coração, porque é muito difícil. Mas quem vai poder defendê-lo como eu estou defendendo?”.

As petições ao juiz Josegrei, nas quais insiste em pedir a absolvição sumária de Leonid, segundo ela vítima de uma série de conspiraçõ­es e abusos, chama a atenção pela extensão e prolixidad­e. Em geral são dezenas de páginas contendo jurisprudê­ncia, cópias de reportagen­s, fotos de família etc.

A última petição, protocolad­a na quinta (20), é aberta com os dizeres: “+ EXTINTO VALDIR PEREIRA DA ROCHA EM 15/10/2016 +”, referência ao filho assassinad­o, e “Se Maomé não vem à montanha, a montanha vem à Maomé!”.

Num trecho do documento, ao mencionar a greve de fome de Leonid, escreveu: “Se Vossa Excelência demora na decisão final é por conta que não encontra melhor caminho para condenação, então, [Leonid] prefere a greve de fome até se extinguir! Quer um final onde possa prevalecer seu direito de funeral islâmico (...)”.

A defensora pública Rita Cristina de Oliveira, que defende outros réus no processo,consideraq­uea“confusão entre a situação de mãe e de advogada” atrapalha a defesa de Leonid e disse já ter alertado o juiz sobre sua posição.

Seconsider­assemqueor­éu ANDARILHA Natural de Porto Murtinho (MS), Zaine é uma andarilha. Já viveu em todos os Estados do Centro-Oeste e no Tocantins. Com a prisão de Leonid, deixou Cuiabá e alugou um quarto em Campo Grande para estar perto do filho.

No quarto, muito simples e abarrotado de documentos do processo, dorme numa rede. Tem um computador para redigir as petições e, à mão, registra num diário seus tormentos mais recentes.

De fala mansa, costuma ter jorros verbais com digressões que tornam impossível ao interlocut­or compreende­r o que quer dizer. Associa tragédias da família (morte do pai, de umafilha,umacidente­quelhe custou uma vista etc.) a conspiraçõ­es. Parece ser uma mulher muito forte, mas às vezes acusa os golpes. Ao mostrar à reportagem papéis sobre a morte do filho Valdir, chorou.

Teve quatro filhos biológicos (Leonid é um deles) e seis de criação (entre eles Valdir). É divorciada do pai de Leonid. Tem nove netos, sendo dois de Valdir e um de Leonid. (FABIO VICTOR)

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Fotos Marlene Bergamo/Folhapress Zaine El Kadri na Penitenciá­ria de Campo Grande
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A advogada mostra anotação em seu diário no dia em que o filho Valdir foi espancado e morto em presídio de Mato Grosso

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