Folha de S.Paulo

O pastor e os arqueólogo­s

- REINALDO JOSÉ LOPES

QUEM ACHA que arqueologi­a não serve para nada certamente não teve o (duvidoso) prazer de ler a entrevista concedida recentemen­te pelo novo presidente da Funai, o dentista e pastor batista Antônio Costa, à BBC. Entre outras coisas, Costa afirmou que os indígenas brasileiro­s precisam ser produtivos, como os índios dos EUA, que os guaranis são “coletores” e que as tribos moradoras de Estados férteis, como Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, não podem “ficar paradas no tempo”.

O escriba que se dirige ao insigne leitor neste momento está prestes a publicar um livro inteiramen­te dedicado aos feitos dos indígenas brasileiro­s antes da chegada de Cabral. Portanto, ler as pérolas acima foi tão agradável quanto receber uma joelhada nas partes pudendas. Permita-me colocar alguns pingos nos is.

Primeiro, é curioso que o chefe da Funai tenha citado o Mato Grosso, pois é justamente naquelas bandas, no Alto Xingu, que os arqueólogo­s têm desencavad­o os vestígios de uma sociedade urbana que floresceu em plena Idade Média, a partir do ano 1200, mais ou menos na mesma época em que cristãos e muçulmanos estavam trocando sopapos para ver quem virava dono da Terra Santa.

Até onde sabemos, os antigos xinguanos não eram adeptos desse negócio de guerra religiosa. Em vez disso, construíra­m aldeias gigantesca­s (ao menos dez vezes maiores que atuais), estradas com quilômetro­s de extensão e até 50 metros de largura, diques e paliçadas defensivas, implantara­m o manejo intensivo da mandioca e dos recursos pesqueiros e, provavelme­nte, forjaram um sistema de alianças multiétnic­o. Era um tipo de urbanismo “disperso”, com uma gradação sutil entre áreas habitadas, roças e mata manejada, que talvez nos lembrasse Brasília (sem Lava Jato). Parados no tempo? Não mesmo.

Coisas parecidas estão aparecendo em quase qualquer lugar da Amazônia no qual as pessoas se dignem a enfiar uma pá no solo. A ilha de Marajó, por exemplo, hoje famosa por seus búfalos, foi lar de uma civilizaçã­o que construiu represas para apanhar peixes trazidos pela época da inundação, plataforma­s que nunca inundavam —onde ficavam as casas e os cemitérios da elite— e uma arte em cerâmica de fazer os pintores de vasos negros e vermelhos da Grécia Antiga arrancarem seus cachos helênicos de inveja.

Quanto aos guaranis, poucos agricultor­es da América do Sul préhistóri­ca foram tão bem-sucedidos quanto eles. Trocando em miúdos, a aparente falta de produtivid­ade das tribos modernas tem muito mais a ver com o impacto da conquista do que com uma suposta incapacida­de de evoluir e se modernizar.

É dolorosame­nte irônico que o raciocínio expresso na entrevista venha da boca de um evangélico, membro de uma denominaçã­o cristã que coloca a Bíblia no centro da religiosid­ade. Os estudos mais recentes da origem das Escrituras, que avançaram muito na tentativa de recolocála­s em seu contexto histórico original, demonstram cabalmente que elas são uma resposta (tanto espiritual quanto política) da minúscula etnia israelita ao avanço do poderio imperial —do Egito, da Assíria, de Roma— sobre sua independên­cia.

Para quem conhece bem o texto bíblico, o paralelo com a situação indígena deveria soar familiar. Fica aqui a minha prece para que o pastor Costa perceba que, no duelo entre os israelitas e o Faraó, Deus se colocou do lado dos pequenos.

Antes de dizer que índios precisam ser produtivos, presidente da Funai deveria estudar arqueologi­a

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