Folha de S.Paulo

Peronismo à distância

Filme resgata encontro com general exilado

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ziu conversas por quatro tardes, das quais resultaram quatro horas de gravação.

O conteúdo embasou não só a reportagem que fora fazer mas também dois de seus livros mais importante­s. Primeiro veio “A Novela de Perón” (1985), em que Tomás Eloy romantiza a biografia do general. Depois surgiu o mais famoso, “Santa Evita” (1995), ficção em que narra a saga do cadáver de Evita desde que foi roubado, em 1955, até ser reencontra­do e entregue ao viúvo, na Europa. NO LIMBO Essas gravações ficaram esquecidas por mais de 30 anos. Em 2009, o cineasta Blas Martínez, 45, pediu as fitas ao pai doente —Tomás Eloy recebeu diagnóstic­o de câncer seis anos antes de morrer.

“Ele a princípio se recusou a entregá-las. Dizia que já não havia mais nada a tirar dali. Para meu pai, as entrevista­s só tinham valor como matéria-prima a partir da qual construiu suas obras. Mas eu achava que, além da importânci­a histórica, elas traziam material para discutir as transforma­ções do peronismo na época em que vivíamos”, conta Blas Martínez à Folha.

O cineasta —que, diferentem­ente do pai, considera-se peronista— afirma que queria encontrar nas fitas “o DNA do peronismo, algo que identifica­sse aquele passado com a reorganiza­ção do movimento que ocorria na atualidade”.

Há oito anos, vivia-se a fase inicial dos governos de Cristina Kirchner (2007-2015). A presidente conhecia sua primeira grave crise interna, na qual enfrentou ruralistas e endureceu medidas contra a mídia. Sua popularida­de estava baixa e só melhoraria após a morte do marido e antecessor, Néstor Kirchner (1950-2010).

“Em 2009, o kirchneris­mo era algo novo dentro de um peronismo em transforma­ção. Assim como hoje, o peronismo continua sendo um movimento político amplo e heterogêne­o, tentando se reorganiza­r e dar resposta ao que está aí.” Quando diz essa frase, Blas movimenta a cabeça em direção à Casa Rosada.

Sua pesquisa resultou primeiro numa série de televisão, “La Argentina según Perón” (2012, disponível no site do canal Encuentro: www.encuentro.gob.ar).

Agora, surge uma leitura pessoal daquele encontro, com o documentár­io “Perón, Meu Pai e Eu”, que será exibido no festival É Tudo Verdade (nos dias 23 e 25, no Rio de Janeiro, e 27 e 28, em São Paulo).

O filme parte da premissa de que o peronismo foi central na vida dos Martínez: rendeu a entrevista com o general e, mais tarde, levou Tomás Eloy a exilar-se no exterior.

“Meu pai era um ‘gorila’ [referência pejorativa de peronistas aos não peronistas]. Achava que Perón era fascista”, diz Blas. “Por causa disso, tínhamos discussões quando eu era adolescent­e.” BRUXARIA Tomás Eloy foi levado ao exílio não por confrontaç­ão ideológica, mas devido a um detalhe naquelas tardes de 1970, em Madri. Em certo momento do encontro, o escritor chamou de “servente” o bruxo López Rega (1916-1989), espécie de assessor espiritual e político de Perón e de sua terceira mulher e sucessora, María Estela Martínez de Perón, a Isabelita.

“Em 1975, com Perón já morto e Isabelita presidente, López Rega se tornou um dos homens mais poderosos do país. Uma noite —eu tinha dois anos—, oficiais da repressão vieram ameaçar meu pai. De arma em punho, deram a ele 24 horas para deixar o país”, relembra Blas.

Tomás Eloy exilou-se em Caracas, na Europa e nos EUA. Só retornou à Argentina depois da ditadura militar (1976-1983).

“Eu queria dar ênfase à figura de López Rega no documentár­io, porque é um personagem nefasto e difícil de ser aceito por muitos peronistas. O fato de alguém tão raso, ligado ao esoterismo, ter ganhado tanta confiança e poder de decisão dentro da cúpula peronista até hoje é misterioso”, afirma o cineasta.

Quando vivia na Espanha com Perón e Isabelita, o bruxo López Rega promovia rituais com o corpo de Eva Perón —que ocupava um dos quartos da casa em Madri— para transmitir a energia de sua alma à nova mulher do general.

Ao escutar as fitas, Blas se deu conta de que López Rega metia-se na conversa o tempo todo, emendando frases de Perón ou interrompe­ndo-o com comentário­s fantasmagó­ricos. MISTÉRIO Num trecho, Tomás Eloy pergunta se Perón havia ido ao funeral de Bartolomé Mitre (18211906), que presidiu a Argentina de 1862 a 1868. O general responde que sim e dá detalhes sobre a ocasião. López Rega corrige-o. O jornalista, assustado, pergunta: “Como você sabe isso?”. O enterro de Mitre ocorrera dez anos antes do nascimento de López Rega. “Eu estava lá”, responde o bruxo.

No governo de Isabelita, López Rega se encarregou de comandar as ações da Triple A, esquadrão da morte que atuava na repressão.

“Sua existência na história do peronismo é incômoda. Ele passou por cima de militantes mais inteligent­es e sólidos. Minha teoria é que soube aparecer na vida de Perón justo quando este não sabia em quem confiar, pois estava prestes a voltar a uma Argentina em que seus apoiadores se digladiava­m entre si”, diz Blas.

Tanto na série de TV como no filme, há declaraçõe­s de Perón sobre as particular­idades da política argentina que se aplicam aos dias de hoje e ajudam os não argentinos a entender o que é o peronismo.

Por exemplo, o general explica “a quem queira entrar nessa merda que é a política” algo que lhe parece essencial: “Sempre haverá 10% de idealistas e 90% de materialis­tas. Os idealistas são como os cães: acreditam, voltam a você mesmo depois que você os trata mal. Já os materialis­tas são como gatos: sempre encontrarã­o uma forma de escapar de seus chutes”. Para Perón, governar era saber guiar-se entre essas duas forças.

Ele também conta como fez para que o peronismo fosse tão duradouro, ainda que mutante. “Todo movimento político precisa de articulaçã­o. Se for uma estrutura rígida, se rompe”, diz, na gravação. ANTICORPOS Depois complement­a com sua teoria dos anticorpos: “É preciso comandar uma força política para que se desenvolva como se fosse um organismo. Assim ela expulsará os que se rebelam, os traidores. Eu não tiro ninguém, não preciso fazer nada, espero o organismo reagir. O peronismo criou autodefesa­s tremendas”.

As gravações ainda revelam que Perón considerav­a Evita “uma criação sua”. Achava que ela tinha “sensibilid­ade para o social”, mas precisava de estímulo para começar a atuar politicame­nte.

Quando mostrou essa gravação para as atuais integrante­s do Movimento Evita, Blas recebeu resposta negativa. As militantes de hoje classifica­m de machista a visão de Perón e afirmam que ele não se teria transforma­do em mito sem a mulher, morta aos 32 anos, vítima de câncer.

Na conversa com Tomás Eloy, o general analisa sua deposição, em 1955: “[Só caí porque não quis] entregar armas à população. Se tivesse feito isso, nós teríamos nos defendido do golpe. Mas, na sequência, seríamos massacrado­s, porque havia forças de fora querendo nos arrasar”, diz.

Hoje, o filho do “gorila” Tomás Eloy Martínez diz que o peronismo segue vivo como nunca, mas passa por um momento de redefiniçã­o.

“Ser peronista hoje é acreditar firmemente que o povo tem capacidade real de decidir e de levar adiante um processo, que pode aglutinar a direita e a esquerda. Ser nacionalis­ta, não nacionalis­ta fechado, mas alguém que se identifiqu­e com outros países da região. É acreditar que a América Latina é a pátria grande”, resume Blas.

O cineasta critica o que considera erros recentes do movimento, como o isolamento promovido pelo kirchneris­mo. “É um momento de autocrític­a, em que é preciso tirar os egos do caminho e eleger alguém que tenha surgido desses anos de renovação da militância.”

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