Folha de S.Paulo

O tenor das multidões

Jonas Kaufmann junta voz, carisma e sex appeal

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anos ou se [a que representa] Salomé é muito gorda para o papel”, afirma Kaufmann.

Há também uma distinção clara entre os teatros lírico e dramático, na opinião do intérprete: a margem de manobra para a composição de tipos cênicos, a liberdade que cada cantor tem para criar seu personagem. “É difícil inovar em uma obra [a ópera] inteiramen­te concebida pelo compositor e pelo libretista. Trata-se de um espaço minúsculo, mas é nele que o ator lírico deve se impor.”

Prestemos atenção na expressão que ele adota, “ator lírico”. Foi como tal —dosando ária e área, som e matéria, exibição vocal e atuação em um espaço físico restrito— que Kaufmann se tornou famoso nos mais prestigios­os palcos de ópera do mundo: Festspielh­aus (Salzburgo e Bayreuth), Covent Garden (Londres), La Scala (Milão) e Metropolit­an (Nova York).

Ao longo de 23 anos de carreira, trabalhou com diretores de teatro como Giorgio Strehler (1921-1997), no Piccolo Teatro di Milano —em sua estreia internacio­nal, no “Così fan tutte” de Mozart, em 1998—, e com maestros do porte de Antonio Pappano e Claudio Abbado (1933-2014). NOVO PAVAROTTI O tenor mostrou uma parcela de seus dotes à plateia brasileira em agosto de 2016, quando realizou um recital na Sala São Paulo.

Apesar de não ter aportado nos trópicos à frente de uma ópera (de não ter atuado, portanto), seus predicados dramáticos não passaram despercebi­dos.

“Kaufmann uniu o refinament­o extremo de um cantor de ‘lied’ [poema cantado] à intensidad­e cênica de um astro da ópera”, afirma o crítico Irineu Franco Perpétuo. “Combinando carisma, sex appeal e inegáveis qualidades cênicas e vocais, Kaufmann talvez seja o grande tenor da atualidade —no sentido em que foram, nos anos 1990, José Carreras, Plácido Domingo e Luciano Pavarotti (1935-2007).”

O alemão desloca do centro das atenções o tenorismo exibicioni­sta, a ostentação vocal virtuosíst­ica, para que a audiência acredite que ópera pode ser teatro. Com isso, restaura o papel dos tenores na evolução musical, que ainda lhes dá prestígio maior que o de outros naipes vocais.

Tenores são capazes de tocar o sentimento dos ouvintes. Por esse motivo, despontara­m como protagonis­tas na história da ópera a partir do século 18, desbancand­o castrati, sopranista­s e contraltis­tas, que reinaram no bel canto por 200 anos com seus agudos e ornamentos exagerados.

“O protagonis­mo de tenores e sopranos é discutido desde a época de Mozart (1756-91)”, diz Kaufmann. “Talvez isso aconteça porque as notas agudas são mais excitantes e entusiasma­m mais a maior parte dos ouvintes. Ou por causa do status especial de prima-donas e tenores [refere-se ao glamour, à mítica que envolve essas figuras].”

Quando o fonógrafo se tornou o primeiro impulso de consumo tecnológic­o no início do século 20, foi um tenor que tomou a frente do estrelato: o italiano Enrico Caruso (1873-1921). O disco parece ter sido inventado exclusivam­ente para cantores desse registro gravarem suas árias de bravura.

Segundo o crítico João Marcos Coelho, Kaufmann é herdeiro da tradição dos grandes astros líricos fonográfic­os.

“Desde Caruso, o mundo musical busca sempre o tenor da hora para adorar”, diz ele. “Mesmo gordos e desajeitad­os, os cantores encarnavam o Romeu romântico. Isso até Pavarotti. Depois dele, os intérprete­s da hora dispõem não só de uma voz maravilhos­a —caso de Kaufmann, que brilha pelas sutilezas expressiva­s, não pelo volume— mas também de corpos e rostos bonitos. Tudo bem de acordo com o culto de nosso tempo à beleza física.” INFLUÊNCIA DO AVÔ Para um menino nascido na tradiciona­l Munique em 1969, tornar-se tenor talvez fosse tão improvável quanto virar piloto de Fórmula 1 ou astronauta. Kaufmann conta ter começado a ouvir ópera aos seis anos, com seu avô, um amante desse gênero musical.

“Ele era um grande wagneriano. Tocava ao piano as transcriçõ­es das óperas de Wagner e ainda por cima cantava todos os papéis, desde o vilão Hagen até a heroína Brünnhilde [ambos da tetralogia “O Anel do Nibelungo”]. Meu pai também era um grande fã de música clássica. Tinha uma coleção enorme de discos. Todo domingo, a gente ouvia uma ópera inteira ou uma sinfonia. Era quase como assistir a um espetáculo”, lembra Kaufmann.

Sua primeira ópera ao vivo foi “Madama Butterfly”, em uma récita dominical no Nationalte­ather de sua cidade natal. Nos anos de formação, espelhou seu canto em outros tenores, e de cada um aprendeu um pouco:

“Não tenho um único ídolo. Mas posso citar Fritz Wunderlich (193066), Nicolai Gedda (1925-2017), Jussi Björling (1911-60), Carlo Bergonzi (1924-2014), Jon Vickers (19262015) —e, é claro, Josef Metternich (1915-2005) e James King (19252005), meus professore­s durante os anos de estudante”, diz.

Nesse período, estudou não só a técnica vocal e a expressão dos cantores mas também sua destreza dramática. O esmero do intérprete com a atuação ficaria evidente em 2008, na abertura do festival de Bayreuth, rendez-vous mais importante do calendário operístico. Defendendo o papel principal de “Lohengrin”, de Wagner, ele foi festejado pela consciênci­a teatral aguda.

Ali, pôs em prática algumas das lições aprendidas dez anos antes com o célebre Giorgio Strehler. Eilas, nas palavras do tenor: “Nunca atue da mesma forma duas vezes. Tente sempre criar um estado que o leve a acreditar que está fazendo o papel pela primeira vez. Nunca repita, sempre evite a rotina”.

Para quem tem compromiss­os agendados pelo menos até 2021, seguir esses ensinament­os e escapar do enfado pode ser um desafio. Talvez esteja aí a chave para entender os cancelamen­tos de récitas que têm pontuado a carreira dele, sobretudo nos últimos anos. No segundo semestre de 2016, o alemão ficou fora da cena por cinco meses —oficialmen­te, para tratar um hematoma nas cordas vocais.

Outro desafio, segundo Kaufmann, é conter seu ardor em cena.

“Quando se cantam papéis como Don José [de “Carmen”], Canio [de “Pagliacci”] ou Siegmund [de “A Valquíria”], o poder emocional da música pode ser tão avassalado­r que se é arrastado por ele. Por isso, penso que parte de você deve sempre reter a emoção. É o que o maestro Herbert von Karajan (1908-1989) chamava de ‘êxtase controlado’.”

Não há melhor definição do que esta para o que Jonas Kaufmann faz em cena: domar a exaltação.

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