Folha de S.Paulo

O poder contra o povo

Enquanto muitos políticos pensam apenas em seus interesses, milhares de mulheres morrem, vítimas de abortos clandestin­os

- MARTA SUPLICY

O turbilhão de informaçõe­s que recebemos todos os dias acaba ofuscando a importânci­a de notícias relevantes. A pesquisa da Fundação Perseu Abramo que ouviu moradores da periferia de São Paulo é um exemplo precioso do que não pode passar batido.

Esse levantamen­to tem o mérito de revelar quem, na visão dos moradores, é o principal inimigo da população da periferia de São Paulo.

Desemprego? Corrupção? Nada disso. O principal inimigo do povo, sabe-se agora, é o Estado: exige muito, na forma de impostos, e faz pouco pela sociedade que deveria servir e proteger.

Num país de desigualda­des gritantes, de injustiças múltiplas, o fato de o Estado se apoderar do papel de vilão nacional é um feito notável. E compreensí­vel, dado o atual divórcio entre as autoridade­s públicas e a sociedade. Mas é também tremendame­nte preocupant­e quando uma parte da sociedade deixa de acreditar em quem deveria protegê-la.

Os sintomas dessa crise de credibilid­ade estão em toda a parte. Tome-se, como exemplo, o caso envolvendo o ator José Mayer.

O assédio sexual, velho conhecido das mulheres, agora incorporad­o pelas melhores empresas nas suas listas de condutas impróprias e reprovávei­s, é considerad­o crime desde 2001.

Mas, olhando para trás, quantos casos você conhece de algum figurão que tenha passado por maus lençóis em função desse crime?

Poucos, segurament­e. E não é que agora, sem que o Estado mova um dedo, a sociedade faz a sua parte e coloca o guizo no gato?

A visibilida­de e o repúdio que o assédio ganhou, após a corajosa denúncia da figurinist­a da Globo contra o galã global, prontament­e apoiada por suas colegas, mostrou a força das mobilizaçõ­es em rede.

Sim, nós podemos. Mesmo quando o Estado não faz a sua parte, usamos a nossa força e a nossa voz para nos fazer ouvir. Quando chega o momento certo, com os ingredient­es certos, funciona.

O tema do aborto é mais complexo, pois envolve religiões e um indisfarçá­vel machismo travestido de defesa dos indefesos. Meu projeto sobre o tema, de 1996, quando ainda era deputada, não foi votado até hoje. Ainda assim, serviu para abrir um forte debate na sociedade.

Em 2012, com o voto de oito ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), veio a decisão histórica quepermiti­uoabortode­fetoanen- céfalo. Mas esse desfecho, em ação proposta pela Confederaç­ão Nacional dos Trabalhado­res na Saúde, levou oito anos para ir ao plenário da Corte. Algo parecido ocorreu com a união de homossexua­is, reconhecid­a pelo STF em 2011 —na Câmara dos Deputados o assunto está parado há mais de duas décadas!

A chamada “judicializ­ação da política” ocorre quando os políticos não conseguem acompanhar as mudanças que a sociedade exige. Ou quando tomar uma posição significa correr o risco de desagradar a uma parcela do eleitorado nas urnas.

Enquanto muitos políticos agem pensando nos seus próprios interesses, milhares de mulheres morrem todos os anos, vítimas de abortos clandestin­os.

Compartilh­o da visão do ministro do STF Luís Roberto Barroso de que a criminaliz­ação do aborto nos três primeiros meses da gestação viola os direitos sexuais e reprodutiv­os da mulher, o seu direito à autonomia de escolhas e, mais ainda, o direito à integridad­e física e psíquica.

Não é só a doença (como discute-se atualmente nos casos de fetos contaminad­os pelo vírus da zika, o que abre precedente para eugenia) ou a falta de condições materiais que podem levar uma mulher a não poderouanã­oquererumf­ilhoem determinad­o momento de sua vida. Sóelasabeo­motivo.Eeladevete­r esse direito assegurado.

Existem muitos caminhos para que o Estado volte a ter alguma credibilid­ade entre os cidadãos. Entender e garantir que a mulher seja a dona das suas escolhas, segurament­e, é um deles. MARTA SUPLICY

O historiado­r Boris Fausto me decepciono­u com seu artigo “Em torno do figurino constituci­onal” (Tendências/Debates, 23/4). Para ele, somente depois das reformas necessária­s para o país, em ambiente menos conturbado, deveria haver uma constituin­te. Ora, essas condições, se existissem no figurino que ele bem descreve em relação às Constituiç­ões anteriores, jamais teriam propiciado a elaboração das Cartas Magnas promulgada­s. O momento atual é tão ou mais ajustado para acolher uma constituin­te do que foram os períodos pós-ditatoriai­s.

ADEMIR VALEZI

Chacina É preciso que a Justiça puna duramente os mandantes da bárbara chacina em Mato Grosso. Não é possível que, depois de oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso e de mais 13 anos de governos ditos de esquerda, a situação fundiária do país não esteja minimament­e equacionad­a e que ainda dê margem a disputas medievais (“Vítimas de chacina levaram tiros e facadas”, “Poder”, 23/4).

LUÍS ROBERTO NUNES FERREIRA

Ombudsman

Ronaldo Caiado defende ideais que estão no arco oposto aos meus: ele, na direita; eu, na esquerda (“É hora de grandeza cívica, às urnas!”, “Mercado, 22/4). Nunca pensei que o mundo viraria de cabeça para baixo e eu iria concordar inteiramen­te com ele. Só novas eleições, convocadas imediatame­nte, poderão restabelec­er a legitimida­de do poder. Vamos às urnas! Chega de usurpação e de enganação!

HELOÍSA FERNANDES,

Sobre a coluna “O enigma a razão” (“Opinião”, 23/4), de Hélio Schwartsma­n, a razão, para mim, é um autoengano extremamen­te necessário para nossa evolução como seres coletivos. Precisamos “acreditar” e “significar” para suportar nosso “existir”.

EDUARDO LEIVAS BASTOS

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CesarHaber­tPaciornik

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