Folha de S.Paulo

O Brasil precisa reconhecer que a transição democrátic­a acabou. Trinta anos depois do fim da ditadura, precisamos começar a nos perguntar de que tipo de ordenament­o precisamos daqui para a frente

- MARIANA MOTA PRADO ESPECIAL PARA A

E OFOLHA

Estamos em um momento chave na história do país. Nunca se viram tantos integrante­s da elite política e econômica sendo investigad­os por corrupção. Todavia, há um longo caminho a percorrer até que a lista de Fachin resulte em algum tipo de condenação. Mesmo uma reforma política capaz de minimizar incentivos à corrupção será insuficien­te, se não vier acompanhad­a de outras para garantir que a corrupção seja efetivamen­te punida. Nesse ponto, porém, há um desafio adicional. No Brasil, há diversos arranjos institucio­nais e garantias processuai­s que minimizam a probabilid­ade de punição de corruptos. Boa parte dessas proteções foram adotadas no momento de transição democrátic­a, motivadas pelo temor de um retrocesso às práticas adotadas pela ditadura militar. Pareciam perfeitame­nte justificáv­eis naquele momento. Mas será que ainda fazem sentido, na mesma extensão, no contexto presente? Enquanto o país assiste estupefato a uma lista cada vez mais longa de investigad­os por corrupção, diversos juristas, professore­s de direito e advogados descrevem a Lava Jato e seus desdobrame­ntos como “caça às bruxas”. Lembram que não se pode fazer justiça sem obedecer o direito. Enfatizam a importânci­a de respeitar escolhas feitas pelo nosso ordenament­o, como a não admissibil­idade de provas colhidas ilicitamen­te em processo penal. Em nome dessas escolhas, criticam o uso de prisões preventiva­s para incentivar a colaboraçã­o dos réus em investigaç­ões de corrupção. Esse uso instrument­al do direito seria repugnante —uma verdadeira “tortura psicológic­a”, para alguns juristas. Esse discurso sugere que temos apenas duas opções: obedecer aos procedimen­tos processuai­s em vigor no país, interpreta­dos da forma mais radicalmen­te possível em favor do réu, ou voltar à Idade Média. Mas não é tão simples assim. Argumentar que os procedimen­tos adotados nas presentes investigaç­ões seriam “um retorno ao autoritari­smo” e “um retrocesso na evolução institucio­nal do país” aponta para riscos reais, mas ignora que há alternativ­as. Não temos aqui uma escolha entre dois polos, mas um espectro de arranjos institucio­nais que permitem conciliar devido processo legal e combate ao crime. Basta olhar para sistemas jurídicos que fizeram opções distintas. Na questão das provas ilícitas, por exemplo, o Judiciário pode subordinar a proteção de direitos individuai­s ao interesse da coletivida­de, mas de maneira parcimonio­sa e fundamenta­da, sem dar uma carta branca para autoridade­s judiciais e investigat­órias. Por exemplo, em 2009, a Suprema Corte canadense estabelece­u um teste para admitir provas colhidas ilicitamen­te baseado em três critérios: institucio­nais de longo 1) quão séria foi a violação prazo para que a história não da lei na colheita da prova; se repita. 2) qual o impacto dessa A efetividad­e dos meios de violação no acusado; 3) qual investigaç­ão e a severidade o interesse social a ser protegido da punição são apenas o primeiro naquele processo. passo.

Ou seja, a ilicitude da prova A valorizaçã­o do comportame­nto apenas serve de obstáculo ético dentro e fora à condenação se for muito da política, combinado com mais grave do que a ilicitude a reforma do sistema eleitoral do crime que possa ter sido e a criação de alternativ­as potencialm­ente cometido. para financiame­nto de campanhas, Caso contrário, prevalece o são medidas essenciais interesse público. para obtenção de resultados

Da mesma forma, aqueles mais duradouros. que criticam o uso instrument­al Sem isso, fica difícil atrair de prisões preventiva­s não para a cena política pessoas parecem indagar que tipo de sérias e comprometi­das, que prática é adotada em outros estejam realmente dispostas países. Nos EUA, por exemplo, a exercer cargos públicos por os promotores podem negociar motivos nobres, embora sem sentenças menores abrir mão de suas legítimas com acusados que concordare­m aspirações pessoais. em confessar o crime. E também para fazer com

Esse tipo de discricion­ariedade que essas pessoas não se corrompam poupa tempo e dinheiro com o passar do do sistema penal, tornando-o tempo pelos estímulos perversos muito mais célere e efetivo. à sua volta. Corre-se, obviamente, o As distorções no modelo de risco de que hajam erros e excessos. representa­ção popular, a O próprio sistema dos fragmentaç­ão partidária EUA é alvo de muitas críticas. oportunist­a e o custo exorbitant­e

O Reino Unido, por sua das campanhas eleitorais vez, criou um sistema robusto (turbinadas por milagreiro­s de controle judicial dessas do marketing político) negociaçõe­s em casos de corrupção, praticamen­te obrigam a que justamente para coibir a atividade política se transforme abusos. Considerar esses em um balcão de negócios, riscos como uma razão para que precise gerar recursos não adotar essa solução equivale para se manter economicam­ente a jogar fora o bebê com viável. a água do banho. Nesse contexto, o enriquecim­ento

Em contraste com uma visão pessoal tornou-se maniqueíst­a, que sugere até um objetivo secundário. haver um único procedimen­to O motivo principal passou a certo —uma única maneira ser a sobrevivên­cia eleitoral de proteger direitos, precisamos e, com maior investimen­to, a reconhecer que ascensão na carreira. quer arranjo institucio­nal virá Não parece razoável tamqual-TIVARpouco com custos, benefícios e exigir voto de pobreza riscos. Precisamos olhar para de quem quiser ingressar na outros países e nos perguntar política ou exercer função pública. se há mudanças institucio­nais possíveis para que o Para o conjunto da sociedade, nosso devido processo legal faz mais sentido (e sai não se transforme em garantia mais barato) assegurar aos interessad­os de absolvição. uma remuneraçã­o

Por exemplo, nos últimos compatível com as responsabi­lidades anos, 17 países adotaram uma do cargo, sem mordomias Justiça anticorrup­ção, com pouco transparen­tes juízes especializ­ados e garantias ou oportunida­des adicionais processuai­s mais adequadas de ganhos financeiro­s. a esse tipo de crime. O fortalecim­ento das instituiçõ­es É curioso que se discuta tão pressupõe ainda uma pouco a possibilid­ade de adotar mudança de cultura geracional. essa solução no contexto Os jovens precisam perceber brasileiro. desde cedo que vale a

Essa é só uma das várias pena fazer a coisa certa, pelos medidas em jogo quando motivos certos. olhamos para como outras Não se trata apenas de incutir nações combatem corrupção. o medo das consequênc­ias Sem reformas institucio­nais negativas, mas de prestigiar desse calibre, é difícil acreditar as boas condutas pelo que muita coisa mude. reconhecim­ento da comunidade.

O Brasil precisa reconhecer O ambiente familiar e que a transição democrátic­a a educação escolar têm um acabou. Trinta anos após papel importante a cumprir o fim da ditadura, precisamos na difusão de valores éticos começar a nos perguntar de em matéria de convívio social, que tipo de ordenament­o precisamos atuação profission­al, atividade daqui para a frente. empresaria­l e ocupação Precisamos aprender com a de cargos públicos. experiênci­a de três décadas Recompensa­s adequadas aplicando o sistema atual. poder gerar incentivos mais

O índice baixo de condenaçõe­s eficazes, do que a mera punição penais por corrupção no dos culpados. Brasil certamente indica que Melhor ainda se o arcabouço há algo muito errado com arranjos institucio­nal for capaz de institucio­nais e interpreta­ções reduzir as tentações de desvios jurídicas que adotamos comportame­ntais. até então. Ficar atrelado Não por acaso a guarda dos ao nosso passado apenas haréns costumava ser confiada nos dará mais do mesmo: aos eunucos, e não aos muito direito e pouca justiça. santos. MARINA MOTA PRADO

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