O Brasil precisa reconhecer que a transição democrática acabou. Trinta anos depois do fim da ditadura, precisamos começar a nos perguntar de que tipo de ordenamento precisamos daqui para a frente
E OFOLHA
Estamos em um momento chave na história do país. Nunca se viram tantos integrantes da elite política e econômica sendo investigados por corrupção. Todavia, há um longo caminho a percorrer até que a lista de Fachin resulte em algum tipo de condenação. Mesmo uma reforma política capaz de minimizar incentivos à corrupção será insuficiente, se não vier acompanhada de outras para garantir que a corrupção seja efetivamente punida. Nesse ponto, porém, há um desafio adicional. No Brasil, há diversos arranjos institucionais e garantias processuais que minimizam a probabilidade de punição de corruptos. Boa parte dessas proteções foram adotadas no momento de transição democrática, motivadas pelo temor de um retrocesso às práticas adotadas pela ditadura militar. Pareciam perfeitamente justificáveis naquele momento. Mas será que ainda fazem sentido, na mesma extensão, no contexto presente? Enquanto o país assiste estupefato a uma lista cada vez mais longa de investigados por corrupção, diversos juristas, professores de direito e advogados descrevem a Lava Jato e seus desdobramentos como “caça às bruxas”. Lembram que não se pode fazer justiça sem obedecer o direito. Enfatizam a importância de respeitar escolhas feitas pelo nosso ordenamento, como a não admissibilidade de provas colhidas ilicitamente em processo penal. Em nome dessas escolhas, criticam o uso de prisões preventivas para incentivar a colaboração dos réus em investigações de corrupção. Esse uso instrumental do direito seria repugnante —uma verdadeira “tortura psicológica”, para alguns juristas. Esse discurso sugere que temos apenas duas opções: obedecer aos procedimentos processuais em vigor no país, interpretados da forma mais radicalmente possível em favor do réu, ou voltar à Idade Média. Mas não é tão simples assim. Argumentar que os procedimentos adotados nas presentes investigações seriam “um retorno ao autoritarismo” e “um retrocesso na evolução institucional do país” aponta para riscos reais, mas ignora que há alternativas. Não temos aqui uma escolha entre dois polos, mas um espectro de arranjos institucionais que permitem conciliar devido processo legal e combate ao crime. Basta olhar para sistemas jurídicos que fizeram opções distintas. Na questão das provas ilícitas, por exemplo, o Judiciário pode subordinar a proteção de direitos individuais ao interesse da coletividade, mas de maneira parcimoniosa e fundamentada, sem dar uma carta branca para autoridades judiciais e investigatórias. Por exemplo, em 2009, a Suprema Corte canadense estabeleceu um teste para admitir provas colhidas ilicitamente baseado em três critérios: institucionais de longo 1) quão séria foi a violação prazo para que a história não da lei na colheita da prova; se repita. 2) qual o impacto dessa A efetividade dos meios de violação no acusado; 3) qual investigação e a severidade o interesse social a ser protegido da punição são apenas o primeiro naquele processo. passo.
Ou seja, a ilicitude da prova A valorização do comportamento apenas serve de obstáculo ético dentro e fora à condenação se for muito da política, combinado com mais grave do que a ilicitude a reforma do sistema eleitoral do crime que possa ter sido e a criação de alternativas potencialmente cometido. para financiamento de campanhas, Caso contrário, prevalece o são medidas essenciais interesse público. para obtenção de resultados
Da mesma forma, aqueles mais duradouros. que criticam o uso instrumental Sem isso, fica difícil atrair de prisões preventivas não para a cena política pessoas parecem indagar que tipo de sérias e comprometidas, que prática é adotada em outros estejam realmente dispostas países. Nos EUA, por exemplo, a exercer cargos públicos por os promotores podem negociar motivos nobres, embora sem sentenças menores abrir mão de suas legítimas com acusados que concordarem aspirações pessoais. em confessar o crime. E também para fazer com
Esse tipo de discricionariedade que essas pessoas não se corrompam poupa tempo e dinheiro com o passar do do sistema penal, tornando-o tempo pelos estímulos perversos muito mais célere e efetivo. à sua volta. Corre-se, obviamente, o As distorções no modelo de risco de que hajam erros e excessos. representação popular, a O próprio sistema dos fragmentação partidária EUA é alvo de muitas críticas. oportunista e o custo exorbitante
O Reino Unido, por sua das campanhas eleitorais vez, criou um sistema robusto (turbinadas por milagreiros de controle judicial dessas do marketing político) negociações em casos de corrupção, praticamente obrigam a que justamente para coibir a atividade política se transforme abusos. Considerar esses em um balcão de negócios, riscos como uma razão para que precise gerar recursos não adotar essa solução equivale para se manter economicamente a jogar fora o bebê com viável. a água do banho. Nesse contexto, o enriquecimento
Em contraste com uma visão pessoal tornou-se maniqueísta, que sugere até um objetivo secundário. haver um único procedimento O motivo principal passou a certo —uma única maneira ser a sobrevivência eleitoral de proteger direitos, precisamos e, com maior investimento, a reconhecer que ascensão na carreira. quer arranjo institucional virá Não parece razoável tamqual-TIVARpouco com custos, benefícios e exigir voto de pobreza riscos. Precisamos olhar para de quem quiser ingressar na outros países e nos perguntar política ou exercer função pública. se há mudanças institucionais possíveis para que o Para o conjunto da sociedade, nosso devido processo legal faz mais sentido (e sai não se transforme em garantia mais barato) assegurar aos interessados de absolvição. uma remuneração
Por exemplo, nos últimos compatível com as responsabilidades anos, 17 países adotaram uma do cargo, sem mordomias Justiça anticorrupção, com pouco transparentes juízes especializados e garantias ou oportunidades adicionais processuais mais adequadas de ganhos financeiros. a esse tipo de crime. O fortalecimento das instituições É curioso que se discuta tão pressupõe ainda uma pouco a possibilidade de adotar mudança de cultura geracional. essa solução no contexto Os jovens precisam perceber brasileiro. desde cedo que vale a
Essa é só uma das várias pena fazer a coisa certa, pelos medidas em jogo quando motivos certos. olhamos para como outras Não se trata apenas de incutir nações combatem corrupção. o medo das consequências Sem reformas institucionais negativas, mas de prestigiar desse calibre, é difícil acreditar as boas condutas pelo que muita coisa mude. reconhecimento da comunidade.
O Brasil precisa reconhecer O ambiente familiar e que a transição democrática a educação escolar têm um acabou. Trinta anos após papel importante a cumprir o fim da ditadura, precisamos na difusão de valores éticos começar a nos perguntar de em matéria de convívio social, que tipo de ordenamento precisamos atuação profissional, atividade daqui para a frente. empresarial e ocupação Precisamos aprender com a de cargos públicos. experiência de três décadas Recompensas adequadas aplicando o sistema atual. poder gerar incentivos mais
O índice baixo de condenações eficazes, do que a mera punição penais por corrupção no dos culpados. Brasil certamente indica que Melhor ainda se o arcabouço há algo muito errado com arranjos institucional for capaz de institucionais e interpretações reduzir as tentações de desvios jurídicas que adotamos comportamentais. até então. Ficar atrelado Não por acaso a guarda dos ao nosso passado apenas haréns costumava ser confiada nos dará mais do mesmo: aos eunucos, e não aos muito direito e pouca justiça. santos. MARINA MOTA PRADO
FOLHA