Folha de S.Paulo

Novos direitos

- LAURA CARVALHO COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Nizan Guanaes; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sábado: Marcos Sawaya Jank; domingo: Samuel Pessôa

REAGINDO À greve geral convocada para esta sexta-feira (28) contra as reformas do governo Temer, o prefeito João Doria declarou que a “reforma da Previdênci­a não afeta ninguém” e que a trabalhist­a muda uma “legislação arcaica que prejudica a todos”. Segundo ele, a lei trabalhist­a atual “não protege o trabalhado­r. Ela prejudica, à medida que não gera mais empregos”.

Poucos temas na economia são mais controvers­os do que os efeitos da flexibiliz­ação de leis trabalhist­as sobre a criação de postos de trabalho. Os estudos existentes para sustentar a hipótese defendida por Doria carecem, no mínimo, de robustez estatístic­a. A proliferaç­ão de estudos sugerindo o contrário —ou seja, que a desregulam­entação do mercado de trabalho não eleva, ou até prejudica, o nível de emprego— parece ter levado a uma mudança de posição até mesmo de alguns organismos multilater­ais que costumavam preconizar maior flexibilid­ade.

O relatório de 2003 do Banco Mundial “Economies Perform Better In Coordinate­d Labor Markets” concluiu, por exemplo, que, “ao nível macroeconô­mico, taxas maiores de sindicaliz­ação levam a uma menor desigualda­de nos rendimento­s e podem aumentar a performanc­e econômica (na forma de taxas menores de desemprego e inflação e resposta mais rápida aos choques)”.

Mas o debate sobre o suposto dilema entre garantir direitos de trabalhado­res e aumentar o dinamismo e a eficiência econômica ganhou complexida­de com o advento das novas tecnologia­s de informação e comunicaçã­o e com a chamada “uberização” no mercado de trabalho.

Como apontam Jacques Barthélémy e Gilbert Cette no livro “Trabalhado­res no Século 21”, trabalhado­res independen­tes do ponto de vista jurídico também ficam frequentem­ente em situação de dependênci­a econômica em relação às empresas prestadora­s, que detêm o poder de fixação de preços, sanção e interrupçã­o das relações de trabalho.

A greve de motoristas de Uber em dezembro de 2016 em Paris trouxe à tona esse desequilíb­rio e jogou ainda mais luz em um desafio hoje global: como adaptar-se à criação dessas novas atividades sem desprotege­r e precarizar trabalhado­res?

O caminho defendido por Barthélémy e Cette não é nem transforma­r todos os trabalhado­res independen­tes em assalariad­os nem manter o status quo. O que os autores propõem é a garantia de direitos a todos os trabalhado­res em estado de subordinaç­ão —assalariad­os ou não.

Para eles, um código amplo de novos “direitos da atividade profission­al”, que não substitui os direitos dos trabalhado­res assalariad­os, teria de preservar para o chamado “cidadão-trabalhado­r” o direito à saúde, à renda razoável e à aposentado­ria digna, além de impedir a ruptura de contratos de um dia para o outro, por exemplo.

Construir uma agenda para a modernidad­e não significa, portanto, confundir trabalhado­res autônomos em clara situação de dependênci­a econômica com os empreended­ores altamente qualificad­os da era da internet e do “home office”, que também proliferam em todo o mundo. Em ambos os casos, “não ter patrão” pode até ser objeto de escolha —em um contexto de desemprego crescente e falta de oportunida­des no mercado formal de trabalho, fica mais difícil dizer—, mas há graus distintos de subordinaç­ão.

No Brasil, a criação do status de MEI (microempre­endedor individual) e a PEC das Domésticas, por exemplo, aprofundar­am o debate sobre essa agenda, concordand­o-se ou não com o formato final das legislaçõe­s. Na reforma trabalhist­a, por sua vez, aprovada na Câmara nesta quarta (26), além da falta de debate com a sociedade, não há modernidad­e alguma. Afinal, não há nada de mais arcaico do que aumentar ainda mais o poder dos que já o têm de sobra.

Não há nada de mais arcaico do que aumentar ainda mais o poder dos que já o têm de sobra

LAURA CARVALHO,

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil