Folha de S.Paulo

PC ou não PC, eis a questão

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

NO LIVRO “Meu Menino Vadio” (ed. Intrínseca), relato seco e corajoso de sua experiênci­a como pai de um menino autista, o jornalista carioca Luiz Fernando Vianna condena o emprego depreciati­vo que a palavra “autista” ganhou na política brasileira.

“Tornou-se comum políticos —inclusive um ex-presidente da República— chamarem seus opositores de ‘autistas’, acusando-os de estarem dissociado­s da realidade”, anota. “Também já fizeram isso intelectua­is, artistas, jornalista­s, uma presidente do Supremo Tribunal Federal.”

O problema com isso? “Em primeiro lugar, é um uso mentiroso. Em segundo lugar, significa estigmatiz­ar uma parte da população que precisa ser incorporad­a à vida social, e não rotulada como incapaz de fazê-lo”, argumenta Vianna. “Se hoje evitamos adjetivos como ‘retardado’ e ‘mongoloide’, devemos poupar de agressão semelhante as pessoas com autismo.”

Se o tal uso não é propriamen­te mentiroso, mas metafórico, o segundo argumento me convence no ato. Vasculho a memória para descobrir se eu mesmo usei algum dia a palavra “autista” com esse sentido. Talvez sim, não me lembro bem. O que garanto é que não o farei de novo.

Trata-se, como se vê, de uma daquelas controvérs­ias que costumamos agrupar sob um amplo guarda-chuva no qual, em letras garrafais, está escrito “PC – politicame­nte correto”.

Amplo demais, o guarda-chuva presta um desserviço ao debate. Abriga preocupaçõ­es muito diversas e sugere que, diante delas, temos Condenação de palavras supostamen­te ofensivas pode ser justa ou não; é preciso examinar caso a caso dois caminhos: aceitar ou repudiar todas. Em bloco. Não é uma dicotomia inteligent­e.

Rejeitar como “coitadismo” a totalidade dos argumentos PC é menospreza­r o papel da língua, reflexo da sociedade, na perpetuaçã­o de vilezas. Nenhum uso está acima da crítica.

Aceitar de saída todos esses argumentos é ignorar que a língua, arena política onde o pau quebra, pertence à sociedade que a fala e não a um ou outro grupo. Toda crítica está sujeita à crítica.

Enquanto a coletivida­de não chega a uma conclusão (debates eternos não estão descartado­s), a decisão cabe ao indivíduo. Senhor da sua fala, ele não precisa esperar o veredito da sociedade para fazer sua escolha política e moral.

Examino o verbo “judiar” (maltratar). Tem óbvio ranço antissemit­a, embora haja dúvida sobre seu sentido original: referência aos maus-tratos que os judeus infligiram a Jesus ou aos que eles sofrem desde então? De uma forma ou de outra, decido cortá-lo do meu vocabulári­o.

Agora examino “denegrir”. Racista? Procuro algo que sustente a tese. O que se suja fica escuro, encardido, fuliginoso, e o resto parece coincidênc­ia cromática. Nem todo charuto é um símbolo fálico, como provam o elefante branco e a febre amarela. No meu tribunal íntimo, absolvo a palavra.

Somos convocados a tomar decisões desse tipo o tempo todo. O que é ótimo.

O PC comete abusos e se expõe ao descrédito quando, por exemplo, insiste em eufemismos ridiculame­nte rebuscados para palavras funcionais ou tenta censurar dicionário­s, como se estes inventasse­m o vocabulári­o que apenas retratam.

No entanto, a reflexão permanente que ele propõe tem o mérito de nos deixar ligados. Os problemas sociais não serão resolvidos na língua e pela língua, mas negar que ela esteja incluída no pacote é desconhece­r sua natureza.

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