Folha de S.Paulo

Homem pode ter chegado à América 130 mil anos atrás

Nova data apontada em estudo na revista científica ‘Nature’ é 115 mil anos mais antiga do que a aceita hoje

- REINALDO JOSÉ LOPES

Pesquisado­res dos EUA reuniram pistas como restos de mastodonte e pedras que seriam ferramenta­s toscas FOLHA

Califórnia, 130 mil anos atrás. Enquanto a Europa é dominada pelos neandertai­s e os ancestrais dos seres humanos modernos parecem confinados à África, um misterioso grupo de caçadores abate um mastodonte (Mammut americanum) e esmigalha seus ossos com ferramenta­s de pedra.

Se os arqueólogo­s responsáve­is por revelar o cenário acima estiverem corretos, esses são os primeiros indícios da presença da linhagem humana nas Américas, quase dez vezes mais antigos do que o que se acreditava até hoje.

À primeira vista, parece maluquice pura. “Minha primeira reação ao ler o artigo foi ‘não, tem alguma coisa errada’. Ainda não acredito totalmente”, declarou à revista científica “Nature” o arqueólogo John McNabb, da Universida­de de Southampto­n.

Mesmo assim, os pesquisado­res americanos responsáve­is pelo achado reuniram um conjunto respeitáve­l de pistas em favor da data antiquíssi­ma, publicando os resultados na própria “Nature”, uma das publicaçõe­s especializ­adas mais prestigios­as do mundo.

A apresentaç­ão dos dados é “irretocáve­l”, diz o bioantropó­logo Walter Neves, da USP, que estuda os primeiros passos do povoamento das Américas e costuma criticar propostas de datas muito antigas. “Estou quase 100% convencido de que as evidências são, de fato, resultado de atividades humanas.”

O sítio arqueológi­co estudado por Steven Holen e seus colegas do Museu de História Natural de San Diego é conhecido desde 1992. Os ossos de mastodonte (parente extinto dos elefantes) vieram à tona durante obras numa rodovia da região de San Diego.

Inicialmen­te, chamou a atenção dos cientistas a associação entre os restos dos animais e a presença de pedras de vários tamanhos. A ideia é que seriam ferramenta­s toscas usadas para retalhar a carcaça do mastodonte.

Até aí, seria algo interessan­te, mas nem de longe bombástico —indícios de que os primeiros americanos caçavam os grandes mamíferos da Era do Gelo são relativame­nte comuns nos EUA. AÍ VEIO A DATAÇÃO Praticamen­te todas essas evidências, porém, apontam para uma chegada dos seres humanos às Américas há apenas 15 mil anos, provavelme­nte cruzando a língua de terra que então unia o Alasca à Sibéria, a chamada Beríngia (nome derivado do estreito de Bering, pedaço de mar que hoje separa os dois continente­s).

Ao longo dos anos, os pesquisado­res tentaram datar os ossos por meio de várias técnicas, sem sucesso, até que, três anos atrás, um dos colaborado­res do grupo, o geólogo James Pace, conseguiu estimar a idade dos fragmentos por meio de um método que mede as transforma­ções sofridas pelo urânio na amostra. Essas transforma­ções acontecem a uma taxa conhecida, o que permite estimar a idade.

Uma data tão recuada exigia a comprovaçã­o de que os ossos não tinham sido quebrados por processos naturais. Para isso, os cientistas analisaram em detalhes os padrões das fraturas nos ossos e as marcas correspond­entes nas pedras.

A hipótese dos arqueólogo­s é que pedras maiores foram usadas como “bigornas”, nas quais os ossos foram apoiados. Depois, pedras menores, os “martelos”, serviram para quebrar fêmures e outros ossos, talvez para extrair o nutritivo tutano, talvez para usar os pedaços como matéria-prima para ferramenta­s.

O grupo teve até a pachorra de simular o processo com ossos de elefantes e vacas modernos e suas próprias ferramenta­s de pedra. DÚVIDAS SEM RESPOSTA Apesar das evidências fortes, o estudo deixa uma multidão de perguntas no ar, diz Neves. “Não entendo por que não há marcas de descarname­nto, havendo apenas exploração de tutano”, diz ele.

Também é impossível saber, por enquanto, que tipo de ser humano primitivo seria o responsáve­l pelas ferramenta­s. “Algum neandertal desiludido com o Velho Mundo? Um dos primeiros homens modernos? Hominídeos da Sibéria sobre os quais nada sabemos?”, elenca.

Não seria nada fácil para nenhum desses candidatos chegar às Américas, uma vez que a ponte entre o Alasca e a Sibéria não existia há 130 mil anos —ao que parece, uma travessia transatlân­tica (em barcos toscos?) seria necessária.

Enquanto mais dados não surgem, a pesquisa talvez dê novo fôlego às hipóteses mais ousadas da arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon, que trabalha na serra da Capivara, no Piauí.

Respeitada por seu trabalho com os painéis de arte rupestre da região, Niède já obteve dados sobre uma ocupação humana de 50 mil anos no Piauí, mas a maioria de seus pares ainda não aceita essas datas, em parte por não estar convencida de que as pedras toscamente talhadas que ela datou indiretame­nte são mesmo instrument­os feitos por pessoas.

Há uma semelhança interessan­te entre essas pedras e as do sítio da Califórnia, aponta Neves.

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