Folha de S.Paulo

Hermenêuti­ca criativa

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Em breve, o plenário do Supremo Tribunal Federal terá de decidir sobre uma questão tão delicada quanto escandalos­a. Revela um dos abusos que poluíram todas as esferas da administra­ção pública desde que a remuneraçã­o dos seus funcionári­os deixou de ser coordenada por um órgão central, como aconteceu com o DASP durante mais de meio século!

Em 2003, o presidente Lula sancionou a lei 10.698, que fixou um aumento fixo de R$ 59,87 para todos os funcionári­os públicos civis da administra­ção federal direta, indireta, autárquica e funcional. Não podia haver determinaç­ão mais clara: tratava-se de um aumento absoluto, que se aplicaria a qualquer funcionári­o, não importando o nível da sua remuneraçã­o.

A invencível hermenêuti­ca “criativa” entrou em ação. A lei permitiria uma interpreta­ção mais “justa”. De fato, como é possível aceitar “a óbvia injustiça” do aumento para quem recebe R$ 1.000 ser de 6% e, para o desprotegi­do funcionári­o que embolsa R$ 40.000, de “apenas” 0,0015%? Ainda que pareça incrível, corrigir essa “injustiça” foi a decisão dos órgãos do Judiciário (STJ, STM e TST).

O que fizeram? Verificara­m a remuneraçã­o mínima do seu funcionali­smo (qualquer coisa como R$ 452,53) e calcularam qual seria o percentual do seu aumento pela lei (59,87/452,53 = 0,1323), ou seja, de 13,23%.

Logo, a “hermenêuti­ca logarítmic­a” exigiria o aumento de salários em 13,23%. A aritmética está certa, mas o contorcion­ismo hermenêuti­co da interpreta­ção é claramente um escândalo! Como de costume na administra­ção pública, tal decisão atingiu, retroativa­mente, todo o funcionali­smo, sempre pronto a exigir o direito “mal” adquirido da falsa isonomia na diversidad­e! Tal resultado é, em parte, o produto da temeridade de dar autonomia administra­tiva e financeira a quem não precisa cuidar do caixa do Tesouro.

A boa notícia é que, em maio de 2016, a Segunda Turma do STF suspendeu, por unanimidad­e, o reajuste dos servidores da Justiça do Trabalho, mas isso não esmoreceu o “justo furor reivindica­tório”.

No próximo julgamento no pleno, espera-se que o ilustre ministro Gilmar Mendes proponha uma súmula vinculante do STF que atingirá toda a administra­ção pública. Todos esperamos que recolha também a unanimidad­e dos votos! Não se sabe o custo da “generosida­de”, mas, certamente, é de algumas dezenas de bilhões, que fazem falta aos investimen­tos em infraestru­tura, saúde e educação, sem os quais não há (nem haverá) desenvolvi­mento inclusivo.

Passou da hora de voltarmos a um órgão centraliza­do, coordenado­r de uma política salarial única para o funcionali­smo, e de pôr fim à “farra da cascata” que empesteou o setor a partir de 1985.

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