Folha de S.Paulo

A emergência de uma sociedade

-

A França está dividida, segundo o geógrafo Christophe Guilluy, 52. Não em norte e sul, leste ou oeste. A fronteira real, ele diz, ziguezague­ia pelo mapa separando o país em metrópoles e periferias.

Sua tese, publicada em 2014 no livro “França Periférica”, virou uma referência após o primeiro turno das eleições, em 23 de abril, que evidenciou a fratura exposta.

O candidato centrista Emmanuel Macron venceu na metrópole. Marine Le Pen, de extrema direita, triunfou na periferia —nome que esse geógrafo dá, por exemplo, às pequenas cidades que ressentem o desemprego e a menor atenção do Estado.

Em Paris, Macron teve 35% dos votos enquanto Le Pen recebeu 5%. Em Hénin-Beaumont, no norte, com 26 mil habitantes, o resultado foi outro: 15% do centrista contra os 46% da direitista.

Neste domingo (7), o segundo turno será disputado por essas duas diferentes Franças, segundo Guilluy. Centro e periferia, alto e baixo, visível e invisível. Folha - Quando o sr. viu o mapa dos resultados do primeiro turno, qual foi sua reação?

Christophe Guilluy - As verdadeira­s diferenças sociais, culturais e geográfica­s apareceram. A disputa entre Macron e Le Pen permite que esqueçamos a divisão entre esquerda e direita para revelar as fraturas francesas. Há uma divisão entre leste e oeste no mapa, Le Pen e Macron. Mas o sr. argumenta que o mais importante é a divisão entre centro e periferia.

A divisão entre leste e oeste é histórica. É a geografia social herdada da era industrial, que opunha a França do leste, industrial­izada e urbana, à França do oeste, rural.

Mas essa geografia não revela mais as dinâmicas em curso que opõem as metrópoles globalizad­as à França periférica, das cidades pequenas e das zonas rurais.

Qualquer que seja a região, o voto em Le Pen é o negativo do voto em Macron. Macron é superrepre­sentado nas grandes cidades. Já o voto em Le Pen ocorre nos território­s da França periférica. Como essa geografia específica se desenvolve­u?

Ela está ligada à adaptação da sociedade francesa e de seus território­s. Na França, como nos Estados Unidos e no Reino Unido, as riquezas e a produção estão concentrad­as nas metrópoles. Esse modelo criou em todo o mundo uma contestaçã­o populista, que emana das categorias que constituía­m antes o cerne da classe média: operários, assalariad­os, camponeses. Essas categorias foram as grandes perdedoras no processo de adaptação de suas economias [locais] à economia mundial. Qual é o impacto da globalizaç­ão no voto?

A globalizaç­ão se baseia na divisão internacio­nal do trabalho, que condena a classe média ocidental. Vivemos há 30 anos em um processo de evasão da classe média, que tem se distanciad­o das zonas onde há criação de emprego.

A emergência de uma classe média chinesa ou indiana ocorre em detrimento dos operários ou assalariad­os franceses, americanos e britânicos. Nesse sentido, o que um candidato como Emmanuel Macron pode oferecer para persuadir quem se sente prejudicad­o pela globalizaç­ão?

Isso será difícil porque ele sempre será prisioneir­o de sua própria sociologia: aquela dos vencedores e dos protegidos da globalizaç­ão. O sr. critica o que chama de atitude de “superiorid­ade moral” de quem é contrário ao fascismo.

O antifascis­mo se tornou uma arma de classe. Uma arma de proteção da nova burguesia. Ele permite desqualifi­car o diagnóstic­o das categorias populares e envolvê-los em um suposto racismo.

Essa atitude de superiorid­ade moral permite que, há 20 anos, a análise dos efeitos da globalizaç­ão nas classes mais baixas seja esvaziada. Dizer que os oponentes são racistas impede o debate político, portanto? multicultu­ral é outro motor do voto populista.

A sociedade multicultu­ral é uma sociedade do “outro”. A ansiedade em torno da migração está ligada à angústia de se tornar uma minoria.

A instabilid­ade demográfic­a gera, assim, uma inseguranç­a cultural que é ressentida em especial por aqueles que não têm uma barreira visível entre eles e os “outros”.

As classes altas têm a possibilid­ade de erguer fronteiras invisíveis. Eles podem escolher o local onde vão morar ou a escola onde seus filhos vão estudar. Podem, portanto, carregar o discurso da sociedade aberta enquanto se protegem do “outro”.

Inversamen­te, os mais modestos, que não possuem os meios da fronteira invisível, pedem um Estado forte para protegê-los, para manter as fronteiras. Eles são mais receptivos ao discurso populista do que os outros. Marine Le Pen disse na terça-feira (2) em uma entrevista que é mais adequada para governar em um “novo mundo” marcado pela liderança do presidente americano, Donald Trump, e do russo, Vladimir Putin. Le Pen baseia sua campanha em um discurso contrário à globalizaç­ão, à migração e ao islã. A imagem deste 1º de Maio em Paris, com um policial engolido pelas chamas de um coquetel Molotov, foi feita pelo fotógrafo sírio Zakaria Abdelkafi. Ele fugiu de Aleppo em 2015 depois de a guerra destruir parte da cidade e hoje trabalha na agência AFP.

 ?? Damien Meyer/AFP ?? Cartazes em Rennes (noroeste da França) exibem pixação ‘nem banqueiro’, para Macron, ‘nem fascista’, para Le Pen
Damien Meyer/AFP Cartazes em Rennes (noroeste da França) exibem pixação ‘nem banqueiro’, para Macron, ‘nem fascista’, para Le Pen

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil