Folha de S.Paulo

Fale com eles

- JAIRO MARQUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

EU TINHA apenas 15 anos, mas o tempo de vida já me era suficiente para ter juntado uma mala pesada de angústias e frustraçõe­s, a maior parte delas ligadas aos meus cambitos finos e à situação de pobreza familiar.

Não gostava nada de mim, estava a léguas de uma relação tórrida de amor ou mesmo de um bom sexo espremido num Fusca, situações que, imaginava eu, poderiam aquietar meus demônios. Não merecia futuro um adolescent­e que não tinha nem isso. Pensava que morrer seria uma saída que, embora pouco digna, me traria alívio, me livraria daqueles olhares aviltantes, daquelas ausências.

Se todo adolescent­e tem lá seus momentos espinhosos, os meus eram cactos afiados que brotavam mais do que mandacaru ora em minha alma, ora dentro do peito. E, para incrementa­r a intolerânc­ia a mim mesmo, a tudo ao meu redor, por ser cadeirante, era impossível chegar perto das pontes, dos precipício­s e até mesmo dos remédios colocados no alto das prateleira­s.

Também não havia refúgio para mim na vida cibernétic­a, inexistent­e naquele tempo e que, pelo andar dos gigabytes, pouco tem feito para que o jovem entenda as dimensões do tempo, as possibilid­ades amplas de estar vivo.

O finado Renato Russo martelava em minha cabeça “quando tudo está perdido, sempre existe um caminho”, um mantra inócuo diante dos pedregulho­s que enxergava travando qualquer rumo que desejasse tomar. Somente o fim parecia suficiente­mente apaziguant­e para a Professore­s, amigos, parentes e agregados podem romper ciclos de sofrimento de jovens oferecendo atenção tormenta que em meus pensamento­s se negava a dormir.

Aquilo tudo só começou a amainar quando o Paulão me chamou para papear. Professor de matemática brincalhão, nossa intimidade era quase nula, mas suficiente para ter me deixado um fio por onde me agarrei para pedir a ele que me servisse um banquete de motivações.

Sem me encher de porquês, abriu as portas da casa para me ouvir falar das dores sem chaga, dos gritos sem eco, dos desmoronam­entos sem castelo nem areia. Às vezes, apenas alguém que ligue uma lanterna é o bastante para romper o que se vê somente sombrio.

Professore­s, amigos, parentes, agregados podem romper ciclos de sofrimento de adolescent­es e jovens oferecendo um mar de palavras, uma chuva de novos pensamento­s, um filme cujo enredo é a inspiração.

Em gravíssima­s situações, a ação concreta pode ser a indicação de um especialis­ta, de um apoio profission­al. Mas tudo pode começar com uma atitude simples de observação e oferta de ombros, de ouvidos, de esperança. Funciona.

Desconheço um recorte de suicídios no Brasil envolvendo pessoas com deficiênci­a, embora saiba bem quanto a adversidad­e física, sensorial e intelectua­l cria demônios para a existência. De tanto não poder, de não conseguir e de ser apartado, vai ganhando força na mente um desejo de não suportar mais a própria condição.

A dor do existir se enrosca perigosame­nte com a dor da exclusão, das dificuldad­es e obstáculos para se manter vivo com alguma sensação de relevância para o mundo e para si mesmo. A prematurid­ade dos calos formados por agruras do dia a dia, ao lado da impulsivid­ade da adolescênc­ia, impede, muitas vezes, que se alcancem janelas de onde brotam novos ares, felicidade. Vai das redes de relacionam­entos reais tentar ampará-los. jairo.marques@grupofolha.com.br

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