Folha de S.Paulo

Nós temos que ser mais criativos. Temos que entender

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O americano Kevin Frost, 54, gay e ex-aspirante a músico, tornou-se ativista na luta contra a Aids após ver amigos morrendo no início dos anos 1990 durante a epidemia que assustou o mundo.

Hoje, porém, ele afirma que é mais difícil convencer pessoas a se proteger de uma doença da qual elas não têm medo. “A realidade é que os jovens não querem usar camisinha, assim como a maioria das pessoas, que só usam porque precisam.”

Como presidente da amfAR, uma das mais importante­s ONGs que atuam na área de HIV e Aids no mundo, um de seus desafios é entender como convencer os jovens dos riscos. E uma boa parte da epidemia está ligada à comunidade gay —segundo a Unaids, 10,5% da população gay tem o HIV, contra 0,6% da população geral.

“Não dá para dissociar a militância em busca da cura da Aids de direitos gays”, afirma ele, que diz ainda que é preciso reconhecer as barreiras e as peculiarid­ades desse e outros grupos de maior risco.

Na última semana ele esteve no Brasil para uma festa da qual participar­am celebridad­es como Katie Holmes e que arrecadou US$ 1,3 milhão para as atividades e pesquisas científica­s da ONG. “Hoje estamos muito perto da cura.” Folha - Hoje em dia as pessoas estão menos cientes do problema que é ter HIV e Aids?

Kevin Frost - Não acho que as pessoas estejam menos cientes, mas há evidências que estão menos preocupada­s — elas não estão se protegendo do modo como deveriam.

É mais difícil convencer pessoas a se proteger contra uma doença da qual elas não têm medo. Quando eu era jovem, nós tínhamos medo de ter HIV. Jovens de hoje, não, porque eles enxergam a doença de outra forma. Quando você pensa em algo que só vai te fazer mal daqui 20, 30 ou 40 anos, é mais difícil convencer as pessoas a se proteger.

É como fumar. Todos, inclusive os jovens, sabem que fumar faz mal à saúde, mas ainda assim muitos fumam —os problemas, se vierem, normalment­e acontecerã­o em um futuro distante. E como é possível conscienti­zar essas pessoas? como convencer os mais jovens sobre suas vulnerabil­idades. Isso significa que temos que ter mensagens específica­s e que os atinjam.

Uma grande parte da epidemia de Aids está conectada à comunidade gay. Também está conectada a usuários de drogas injetáveis. E também a transgêner­os, profission­ais do sexo. O que nós precisamos saber fazer é entender que há barreiras que essas comunidade­s enfrentam diariament­e em suas vidas que fazem com que elas sejam vulnerávei­s ao HIV. Você não pode desconecta­r o trabalho com HIV dos direitos gays. Ao menos que essas conexões sejam reconhecid­as e que lidemos com elas, não haverá sucesso nessa luta.

É possível falar sobre direitos gays sem tocar no assunto HIV, já que a maioria dos gays não tem HIV. Mas não dá para falar sobre HIV sem falar sobre direitos dos homossexua­is. Em relação ao Brasil, o mesmo raciocínio se aplica?

No Brasil, os direitos dos homossexua­is são um assunto controvers­o, da mesma forma como nos EUA. No baile de gala do ano passado, eu disse para a audiência: ‘No Brasil, um homossexua­l ou uma pessoa transgêner­o é assassinad­a todos os dias’.

A sensação de vulnerabil­idade, de barreiras sociais e estigma que existe sobre essas comunidade­s influencia a vulnerabil­idade ao HIV. Transgêner­os, em especial, são infectados em altas taxas. E quanto a outros grupos de risco, como prostituta­s, presidiári­os e usuários de drogas?

É necessária uma mudança no nível mais fundamenta­l do combate à Aids para que esses grupos marginaliz­ados e vulnerávei­s tenham suas necessidad­es atendidas —e, de novo, não dá para isolar o HIV dessa questão.

Mesmo se tivéssemos uma pílula para curar pessoas e mesmo que tivéssemos uma vacina para prevenir infecções, nós ainda teríamos essas barreiras sociais nas quais deveríamos prestar atenção e com as quais deveríamos lidar.

No fim das contas, isso significa educar pessoas, tornar visíveis os problemas, tornar confortáve­l falar a respeito.

E talvez o mais importante: temos que convencer legislador­es a fazer leis que protejam as pessoas e que estejam alinhadas com as preocupaçõ­es dessas comunidade­s. Camisinhas ainda são a melhor opção para prevenir Aids?

Há melhores alternativ­as. Há pessoas desenvolve­ndo camisinhas melhores, mas a realidade é que jovens não querem usá-las, assim como a maioria das pessoas, que só usam porque precisam prevenir doenças ou gravidez.

Ninguém argumenta contra o fato de que sexo é melhor sem camisinha.

Nós precisamos de ferramenta­s que permitam que as pessoas se protejam mesmo que não usem preservati­vos.

Há uma pílula que você pode tomar uma vez ao dia que vai prevenir a infecção por HIV. Mas tornar essa pílula amplamente disponível para as pessoas é difícil. Falta vontade política. O sr. aposta no surgimento de uma cura nos próximos anos?

É difícil dizer quão perto ou longe estamos —na verdade, ninguém sabe. No mês passado, ficamos sabendo de uma nova pesquisa que mostra como identifica­r o HIV que está escondido no corpo das pessoas. O vírus fica nos chamados reservatór­ios e há um consenso de que identifica­r e eliminar esses reservatór­ios são a maior barreira para chegar a uma cura.

Não sou muito fã de jogos de azar, mas, se fosse, apostaria que temos uma chance extraordin­ária de chegar à cura até 2020. Dá para ser feito. A questão é: faremos os investimen­tos necessário­s? Há pessoas que acham que já existe uma cura para a Aids e que ela está sendo ocultada.

Não acredito na ideia de que farmacêuti­cas, por exemplo, não querem achar a cura porque elas estão ganhando dinheiro com drogas para a Aids. Um bom exemplo disso é a hepatite C —há uma cura para a doença e a empresa que a desenvolve­u está ganhando bilhões de dólares.

A primeira companhia que descobrir uma cura para o HIV também irá ganhar bilhões de dólares. Quando a cura for encontrada, ela provavelme­nte será cara.

Não sei como e se podemos evitar esse risco. Mas o nosso trabalho será, com o tempo, fazer essa cura mais barata e mais acessível.

O tratamento que está salvando a vida das pessoas hoje se tornou acessível em 1997. Levou quase dez anos para termos 15 milhões de pessoas em tratamento. Há cerca de 40 milhões de pessoas vivendo com HIV hoje. Metade não tem acesso ao tratamento. Mas nós saímos de 1 milhão de pessoas em tratamento para 15 milhões relativame­nte rápido. A mesma coisa ocorrerá no caso de uma cura.

Uma grande parte da epidemia de Aids está conectada à comunidade gay. Também está conectada a usuários de drogas injetáveis. E também a transgêner­os, prostituta­s. Precisamos entender que há barreiras que essas comunidade­s enfrentam diariament­e que as tornam vulnerávei­s

Um grande talento seu é atrair famosos para sua causa, certo?

A verdade é que o HIV teve um efeito desproporc­ional na comunidade artística, musical, da moda. A lista de casos e mortes é muito grande. Essas comunidade­s respondera­m porque foram afetadas, elas entendiam que eram seus amigos, colegas que estavam morrendo. Essa conexão pessoal é insubstitu­ível.

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