Folha de S.Paulo

ANOS DE SOLIDÃO

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Não era. Em Buenos Aires, ao ler a metade enviada, Porrúa ficou animadíssi­mo. Enviou dinheiro para que a outra parte viesse logo e telefonou animado para Tomás Eloy Martínez. Pediu que o escritor fosse imediatame­nte à sua casa, em San Telmo, para escutá-lo lendo a obra de um autor que, segundo suas palavras, tinha escrito algo “tão delirante” que ele não sabia se o sujeito era “um gênio” ou “totalmente louco”.

Porrúa recitava o romance em voz alta e atirava os manuscrito­s para cima. Como havia chovido, eles se molhavam, mas o editor seguia lendo e caminhando sobre eles. “A primeira edição de ‘Cem Anos de Solidão’ é a que se pode identifica­r porque leva a marca da sola do sapato de Porrúa”, costumava dizer Tomás Eloy aos amigos.

Reunidas ambas as partes, o livro foi para a gráfica. “Quando recebeu a primeira cópia, lá no México, Gabo entregou-a a Mercedes e se deitou ao lado dela para vê-la lendo”, conta escritor portorique­nho, Héctor Feliciano, amigo do casal.

Editor da revista “Primeira Plana”, Tomás Eloy dedicou, então, uma capa da publicação para “Cem Anos de Solidão”. Nela vemos a imagem de um Gabo com cara de assustado, aos 40, magro, mal vestido, e o título: “O Grande Romance da América”.

Vendo que o livro se esgotava rapidament­e das prateleira­s, a Sudamerica­na convidou o escritor para ir a Buenos Aires, a fim de ampliar a promoção do romance.

Foi assim que, numa madrugada fria de agosto daquele ano, Gabo e Mercedes desembarca­ram na cidade, pedindo para comer um famoso “bife de chorizo” local.

Porrúa e Tomás Eloy, que os receberam no aeroporto, se desesperar­am, pois já passava das 3 da manhã. No fim, encontrara­m um lugar aberto, na avenida Costanera, onde Gabo teria comido e entretido os garçons contando histórias do Caribe.

“Ninguém deu bola para eles nos primeiros dias, passaram despercebi­dos. Caminharam pela avenida Santa Fe, foram aos parques; mas logo a presença do autor começou a causar burburinho”, conta Ezequiel Martínez.

Afinal, enquanto Gabo passeava entretido com as atrações da capital argentina, a propaganda e o boca a boca levaram “Cem Anos de Solidão” ao topo da lista dos livros mais vendidos no país.

Mercedes acompanhou Gabo nos primeiros eventos, mas logo trancou-se no quarto do modesto hotel da calle Arenales pois disse que já não tinha mais roupas para usar.

Gabo pediu, então, um adiantamen­to pela venda da segunda edição do livro, com um detalhe: queria tudo em notas pequenas.

Quando o dinheiro chegou em suas mãos em duas maletas, espalhou-o pelo quarto e colocou o resto numa bandeja, dizendo a Mercedes que ela poderia “comprar as roupas que quisesse”, segundo ela mesma contaria depois.

Numa das últimas noites, o casal foi convidado a ver uma peça de teatro da dramaturga argentina Griselda Gambaro. Entraram discretame­nte, com as luzes já apagadas, mas logo alguém o identifico­u e gritou: “Obrigado, García Márquez”.

As pessoas então se levantaram e o saudaram com uma ruidosa salva de palmas. “Já no dia seguinte, ele não podia mais andar na rua sem que o rodeassem para pedir autógrafos”, conta Abello Banfi.

Gabo depois repetiria diversas vezes que Buenos Aires tinha sido o começo de tudo. Estranhame­nte, porém, jamais voltou a aceitar um convite para visitar a cidade.

Tomás Eloy estava seguro de que era por seu caráter tão superstici­oso. “Ele achava que, se aqui tinha começado tudo, aqui poderia também terminar tudo”, conta Ezequiel. Abello Banfi confirma.

“Gabo era muito superstici­oso. É bastante possível que não tenha querido jamais pisar em Buenos Aires por acreditar que a mágica de seu sucesso, assim como se fez, poderia se desfazer aqui.”

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