Folha de S.Paulo

ANÁLISE Sentimento ocupa não só o livro, mas a obra do autor

García Márquez traduziu de forma reiterada isolamento do continente

- JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA

FOLHA

“Cem Anos de Solidão” alcançou o duvidoso estatuto da “popularida­de mediada”, definida por Renato Poggioli. Isto é, a saga do povoado imaginário de Macondo e da família de José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán parece ser conhecida por todos —até pelos que não leram o livro.

Nenhum romance latinoamer­icano obteve sucesso similar de público e de crítica.

As circunstân­cias de sua escrita, como se sabe, foram adversas. Gabriel García Márquez residia na Cidade do México e tanto enfrentava condições financeira­s precaríssi­mas quanto nutria sérias dúvidas acerca do projeto.

A escrita do romance principiou em 1965 e foi concluída em julho do ano seguinte. Incerto, García Márquez enviou partes do manuscrito a Carlos Fuentes. Sem dúvida, sentiu-se reconforta­do com a carta do autor de “Machado de la Mancha”, remetida de Paris em 15 de abril de 1966:

“Tuas primeiras 70 páginas são magistrais [...]. Kafka, Faulkner, Borges, Mark Twain: com essas páginas, querido Gabriel, participas do no-man’s land dessas grandezas e dessas companhias”.

Fuentes acertou em cheio. Em diálogo com Plinio A. Mendoza, o autor de “Crônica de uma Morte Anunciada” recordaria o atrito que definiu sua literatura: de um lado, a oralidade, herdada da avó; de outro, a ficção de Kafka.

A primeira “contava as coisas mais atrozes sem se comover, como se fossem algo que tinha acabado de presenciar”. O segundo, “em alemão, contava as coisas da mesma forma que minha avó”. Daí, o pulo do gato: “Usando o mesmo método [...] escrevi ‘Cem Anos de Solidão’”.

A solidão, tema central do romance, já se encontra no seu livro de estreia, “La Hojarasca”, de 1955, —cuja ação, aliás, transcorre em Macondo.

O “labirinto da solidão” de Gabriel García Márquez implica dois níveis.

Na história dos Buendía, a fundação do mítico povoado respondeu à necessidad­e de José Arcádio de fugir após cometer um assassinat­o e ao desejo de escapar da sombra do incesto do matrimônio com sua prima, Úrsula. O isolamento em que viviam é a imagem acabada de um tipo particular de estar só no mundo.

Já o discurso de aceitação do Nobel, “A Solidão de Nossa América”, apresentad­o à Academia Sueca em dezembro de 1982, é estruturad­o em torno dessa palavra: “Nosso maior desafio tem sido a insuficiên­cia dos recursos convencion­ais para tornar nossa vida crível. Eis, meus amigos, o cerne de nossa solidão”.

Ainda: “Como se não fosse possível outro destino senão viver à mercê dos dois grandes donos do mundo. Eis, meus amigos, o tamanho de nossa solidão”.

Como superá-la? Forjar linguagens, imaginar mundos foi a resposta do escritor.

Mas o caminho foi longo. Em 1950, jornalista de província, ele publicou três artigos instigante­s sobre antropofag­ia. Em “Possibilid­ades da Antropofag­ia”, o jovem de 22 anos afirmou: “A antropofag­ia daria origem a um novo conceito da vida” —e isso no mesmo ano de escrita da “Crise da Filosofia Messiânica”, de Oswald de Andrade!

Em “Possibilid­ade do Eomance?”, García Márquez defendeu que a narrativa colombiana só seria reinventad­a se “fosse afortunada­mente influencia­da por Joyce, Faulkner ou Virginia Woolf”.

Em 30 de setembro de 1967, desabafou com Fuentes: “O romance me deixou numa ressaca horrível: na verdade, subitament­e me dominou o pavor de não ter dito nada em 500 páginas [...]”.

No cinquenten­ário de “Cem Anos de Solidão”, sabemos que disse muito, pois, como um perfeito antropófag­o, ele devorou toda a tradição do romance. JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA

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