Folha de S.Paulo

Neil Gaiman reconta mitos escandinav­os

Novo livro de autor de best-seller ‘Deuses Americanos’, recém-adaptado para a TV, vai da Criação ao Ragnarök

- REINALDO JOSÉ LOPES

Escritor diz que obra recente completa a antiga ao revelar a natureza falível dos deuses e dos humanos FOLHA

Neil Gaiman e os deuses da antiga Escandináv­ia são, para todos os efeitos, velhos conhecidos. Odin, Loki e Thor desempenha­m papéis-chave na cultuada série de quadrinhos “Sandman”, primeiro grande sucesso do escritor britânico, figuram em seu bestseller “Deuses Americanos” e estrelam “Mitologia Nórdica”.

O best-seller acaba de virar série de TV (leia abaixo) e “Mitologia” é uma tentativa do autor de recontar todos os principais mitos escandinav­os, da Criação ao Ragnarök (o Apocalipse viking).

O que Gaiman não esperava, porém, era ver Odin e companhia envolvidos no azedume dos debates políticos sobre imigração nos EUA.

Explica-se: “Deuses Americanos” (tanto o livro quanto a série) retrata as divindades do mundo todo como imigrantes —criaturas “feitas de crença”, levadas para o solo estadunide­nse pelas inúmeras ondas migratória­s que vêm criando o caldeirão cultural e racial dos EUA desde a pré-história. Bastava que um viking —ou irlandês, ou grego— adorador dessas figuras sobrenatur­ais pisasse em solo americano para que seus deuses também se tornassem habitantes do mesmo chão.

Entretanto, como é difícil achar algum adorador de Odin ou de Zeus hoje em dia, os deuses antigos agora têm status quase indigente no mundo de Gaiman —e, de quebra, estão sendo acuados pelos novos deuses, figuras que representa­m coisas como a televisão, a internet e a cultura das celebridad­es e que desejam eliminar seus idosos competidor­es.

“Na época que escrevi ‘Deuses Americanos’ [que saiu originalme­nte em 2001], não me parecia nada controvers­o retratar deuses e personagen­s que eram de várias raças diferentes, ou falar de pessoas que chegaram à América contra sua vontade, trazidas em navios negreiros”, disse Gaiman à Folha.

“Então, ver o mundo político mudar de lá para cá e transforma­r esses temas em coisas ridiculame­nte controvers­as foi esquisito. De repente, a [revista] ‘Vanity Fair’ publica um artigo dizendo que ‘Deuses Americanos’ é a série mais politicame­nte relevante de 2017... Honestamen­te, eu vejo essas coisas e penso: se eu pudesse escolher, se eu pudesse trocar parte da nossa relevância política por um mundo mais pacífico, eu faria essa troca.”

NEIL GAIMAN

escritor

Para o autor, “Mitologia Nórdica” ajuda a iluminar “Deuses Americanos” por revelar a natureza fundamenta­lmente falível dos deuses —e dos humanos que os criaram. “O fato é que, independen­temente da mitologia da qual estamos falando, nós, seres humanos, nunca conseguimo­s criar deuses que de fato fossem melhores do que nós, do ponto de vista ético ou mesmo intelectua­l”, argumenta Gaiman.

“E a coisa legal a respeito dos deuses nórdicos é que eles nem tentam superar a natureza humana. Se eu colocar o Buda numa história, digamos, dá para retratá-lo como mais compassivo e mais zen do que o comum dos mortais, mas os deuses de Asgard vão acabar enchendo a cara e fazendo alguma idiotice. OK, eles nos criaram, e até vão com a nossa cara, mas não ficam pensando no nosso bem maior.” ASGARD O britânico alcança esse objetivo seguindo muito de perto os manuscrito­s originais sobre os deuses de Asgard, escritos em islandês antigo por eruditos medievais como Snorri Sturluson (11791241). “Meu objetivo foi o seguinte: eu não queria inventar tijolos da narrativa, mas podia criar cimento para que elas funcionass­em no contexto moderno”, explica.

“Eu me recusei a criar fatos do zero, mas podia criar detalhes do ambiente que ajudassem os mitos a fazer mais sentido.”

A coisa legal dos deuses nórdicos é que eles não tentam superar a natureza humana. Vão acabar enchendo a cara e fazendo alguma idiotice. OK, eles nos criaram, e até vão com a nossa cara, mas não ficam pensando no nosso bem maior

AUTOR Neil Gaiman TRADUÇÃO Edmundo Barreiros EDITORA Intrínseca QUANTO R$ 44,90 (288 págs.)

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