Folha de S.Paulo

Volta por cima

-

Os delatores da Odebrecht já começaram a contar a história: uma parte dos R$ 14 bilhões investidos no projeto do submarino nuclear foi desviada para caixa dois de campanha eleitoral. Também houve propina para um lobista e para um oficial graduado da Marinha, embora o grande volume de dinheiro desperte suspeitas a respeito da existência de uma rede subterrâne­a de clientelis­mo e patronagem.

O problema não termina por aí. Esse escândalo já havia circulado na imprensa nacional quando o Planalto exonerou do cargo o presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear, Renato Machado Cotta. Ele tentara usar a Lei das Estatais para barrar a indicação de políticos do PMDB, Solidaried­ade e PR para diretorias-chave da Nuclep, empresa estatal responsáve­l por construir parte dos equipament­os para o submarino. Cotta foi demitido por atrapalhar a partilha dos cargos e dos orçamentos públicos que é inescapáve­l ao chamado “presidenci­alismo de coalizão”.

Quando as indicações políticas atrapalham a fiscalizaç­ão de frigorífic­os, por exemplo, o público corre o risco de comer carne podre. Quando há falhas na fiscalizaç­ão nuclear, os danos potenciais são incalculáv­eis. Não há melhor lembrete disso do que o acidente de contaminaç­ão por radioativi­dade ocorrido há exatos 30 anos em Goiânia.

Viciado num sistema apodrecido, o Brasil continua sendo o pior inimigo de si mesmo, e o programa do submarino nuclear não é exceção. Nosso atraso não é imposto por terceiros, mas autoinflig­ido.

Que fazer para dar a volta por cima?

Redobrar a aposta em segurança dos materiais nucleares, linhas claras de comando e responsabi­lidade, assim como transparên­cia das informaçõe­s. Soa idealista, mas não é. Dá para fazer isso sem compromete­r os altos níveis de segredo necessário­s a qualquer projeto de tecnologia sensível na área da segurança nacional. O desafio é impedir que o sigilo crie um escudo protetor para quem contamina o programa com ilegalidad­es.

Algumas ideias de como realizar essa operação circularam em público na tarde desta quarta (3), em Viena. Um grupo de especialis­tas avaliou cenários alternativ­os para o Brasil reformar o marco regulatóri­o de seu programa de submarino nuclear, fortalecen­do-o com vistas a dar a volta por cima num futuro próximo.

O Brasil tem tudo para acertar o rumo, pois seu programa de submarino nuclear já adota critérios mais sofisticad­os do que ocorre em terceiros países que detém essa tecnologia. A prioridade, agora, é impedir que escândalos futuros atrapalhem, atrasem e encareçam o projeto ainda mais.

A liderança terá de vir do Planalto. É um espaço que o próximo presidente deveria ocupar.

MATIAS SPEKTOR

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil