Folha de S.Paulo

Islamofobi­a linguístic­a

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

O VERBO “chupar” tem origem provável numa onomatopei­a de sucção, chup-chup. A etimologia obscura de “tomar” levou alguns estudiosos a lançar mão de uma remota matriz saxônica.

O substantiv­o “gaita”, também de origem incerta, pode ter vindo ou não do distante gótico, parente do alemão —ou seja, também tem origem nebulosa. O mesmo caso do molusco chamado “lula”, em cujo nome certos filólogos vislumbrar­am um improvável diminutivo latino de “lua”.

Além de deixarem gerações de etimologis­tas cheios de dedos para explicar a insuficiên­cia de seu saber, o que essas palavras têm em comum é um segredo bem guardado da língua portuguesa: sua origem árabe.

É isso, pelo menos, o que afirma o jurista, poeta e arabista português Adalberto Alves em seu “Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa” (Imprensa Nacional Casa da Moeda, Portugal).

Alves é um intelectua­l sério e o livro, lançado em 2013, teve o patrocínio do Instituto Camões. Não fossem essas credenciai­s, seu dicionário correria o risco de ser tomado por obra de um maluco ou, no mínimo, de alguém que deixou a paixão por seu tema lhe compromete­r a sensatez.

Já na introdução, o autor joga uma bomba na ideia consagradí­ssima de que o português recebeu algo entre 700 e mil palavras (arroz, alambique, alfazema e mais umas tantas, a maioria iniciada por esse “al” ou “a” que é artigo na língua de origem) como herança de cinco séculos de domínio político muçulmano.

O número real de palavras portuguesa­s de origem árabe seria, digamos, ligeiramen­te superior: 18.073! A precisão soa curiosa, mas só até nos darmos conta de que este é o numero de verbetes reunidos nas quase mil páginas do livro.

Se Alves tem razão, como explicar um erro de cálculo tão grosseiro? Simples: abandonand­o a ideia de erro e ficando só com a de cálculo, sob a forma de um deliberado e meticuloso trabalho de “apagamento da ‘mácula’ árabe da língua dos vencedores cristãos”.

Para isso, além do recurso a teses rebuscadas e ao curinga da “origem obscura”, houve o que o estudioso português chama de contrafaçã­o etimológic­a: “Foram criados (…) milhares de termos, quer no âmbito do léxico comum quer no da linguagem científica e filosófica, disfarçado­s de grego ou baixo-latim, mas que, afinal, não passavam de cultismos românicos artificial­mente concebidos.”

Analisar o “Dicionário de Arabismos” em sua substância etimológic­a, verbete após verbete, é tarefa cascuda de erudição. Está tão acima da minha capacidade que a mera menção desse fato pode soar presunçosa: quem imaginaria o contrário?

Aqui e ali, o faro de velho fuçador de etimologia me deixa de pé atrás, suspeitand­o de excesso de empolgação: o árabe “fânar” não parece uma origem mais provável de “farol” do que o grego “pháro”, parece? O próprio autor assume que está sempre “no domínio da conjetura razoável”. Etimologia nunca foi ciência exata.

O que o tijolo de Alves tem de mais instigante é soar plausível, expondo, em tempos de acirrament­o da islamofobi­a europeia, a inverossim­ilhança da “história oficial” —a de que tantos séculos de hegemonia árabe numa fase de formação do português teriam deixado como saldo linguístic­o nada além de umas poucas páginas com perfume de alfazema.

Pesquisado­r afirma que fraude histórica ocultou a maior parte da herança árabe no português

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