Nascida em uma
Favela de Minas Gerais, Conceição Evaristo, 70 anos, consolida carreira de escritora, ganha mostra sobre sua vida e vai à Flip
Se houvesse um monumento à memória negra, deveria ser construído no fundo do mar, em homenagem àqueles que se perderam na travessia, defende a escritora Conceição Evaristo. Na impossibilidade de levantar tal monumento, ela se dedica a construir uma obra literária sobre o tema.
Embora escreva desde cedo, só agora, aos 70 anos, chega o reconhecimento que a autora mineira buscou. A partir desta quinta-feira (4), ela ganha uma exposição sobre sua vida e obra no instituto Itaú Cultural, em São Paulo.
É também uma das escritoras convidadas da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), no final de julho.
Publicados de forma independente —até hoje ela tem pilhas de livros em casa—, “Becos da Memória” e “Ponciá Vicêncio” ganham reedições pela Pallas. Pela editora Malê, de São Paulo, ela acaba de relançar “Insubmissas Lágrimas de Mulheres”.
São obras marcadas pela crítica social, relação com a ancestralidade negra, racismo, machismo, com diversas personagens femininas.
“A memória é importante. Havia um poeta antilhano que dizia que nós, negros, não estamos em busca do tempo perdido, mas do tempo esgarçado, violentado”, afirma Evaristo, doutora em literatura comparada.
“Alguns críticos dizem que os negros escrevem muito sobre o passado. Mas somos como os escritores judeus, que também têm necessidade de retomá-lo. Temos uma dor que ainda precisa ser tornada explícita.”
A autora cresceu em uma favela de Belo Horizonte, em uma família de cozinheiras, lavadeiras, passadeiras. Algumas das quais, relata ela, trabalharam para as famílias de autores como Henriqueta Lisboa e Otto Lara Resende.
Sua casa quase não tinha livros, mas sim histórias que familiares gostavam de contar, algumas sobre escravidão. Ou de pequenos mitos, como aquele em que uma menina passa embaixo do arco-íris e vira menino (Ponciá Vicêncio, sua personagem, apalpa os seios com medo ao ver um).
Havia só um livro lá no começo, na verdade: “Quarto de Despejo”, no qual Carolina Maria de Jesus (1914-77) conta sua vida em uma favela paulistana. Quando a obra chegou à casa de Evaristo, sua família passou a fazer saraus para lê-lo em voz alta. E, inspirada, sua mãe começou a escrever um diário.
Para Evaristo, Carolina é o melhor exemplo do que considera uma tendência da crítica: tratar a obra de autores negros como documento —e não uma invenção literária.
“Carolina não faz um retrato da fome física, mas da solidão humana. Muitos imaginam que a única angústia da mulher negra ou pobre é a água que falta na bica ou a comida que falta na panela, como se não tivéssemos questões existenciais”, diz.