Folha de S.Paulo

Morto há 80 anos, Noel Rosaédeusd­obotequim na mitologia carioca

Compositor ficou no limbo por 12 anos após enterro, mas ressurgiu para todo o sempre na voz de Aracy de Almeida

- ALVARO COSTA E SILVA

FOLHA

Quando Noel Rosa morreu —há 80 anos— fizeram-lhe as homenagens de praxe: missas, programas de rádio, reportagen­s em jornais e revistas; poemas e canções lhe foram dedicados. Amigos e parceiros lamentaram a morte prematura (27 anos incompleto­s).

Naquele momento, contudo, não havia a intuição de sua genialidad­e. Noel desceu à sepultura como grande cartaz, mas era mais um entre os talentos da chamada Época de Ouro.

Segundo depoimento do cartunista Nássara a João Máximo e Carlos Didier, autores de “Noel Rosa: Uma Biografia”, o único a ter a exata noção do que aquela morte representa­va foi Orestes Barbosa. “Uma perda trágica”, disse Orestes, ainda no enterro.

Passada a dor, Noel entrou numa espécie de limbo. Do qual só saiu 12, 13 anos depois. Aqui e ali alguns se lembravam dele, como Rubem Braga em crônicas, e o próprio Nássara, em entrevista­s e conversas íntimas. Como se sabe, a memória no Brasil é curta — dura no máximo 15 anos, nas contas de Ivan Lessa.

Foi quando Aracy de Almeida —a intérprete de “Último Desejo”, samba-canção que é o testamento do compositor— cruzou de novo o caminho de Noel.

Em 1950 a Dama do Encantado fazia um baita sucesso na boate Vogue, cantando para grã-finos, intelectua­is e boêmios de Copacabana. Em seu repertório, não poderia faltar o velho amigo.

Com a força da voz e da interpreta­ção de Aracy, Noel foi redescober­to. A princípio naquele ambiente chique, mas logo depois nas ruas e nas lojas, com o lançamento de dois álbuns da gravadora Continenta­l —cada um com três bolachas de 78 rotações.

Um luxo só: capa de Di Cavalcanti, textos de Lúcio Rangel e Fernando Lobo, arranjos modernos de Radamés Gnatalli —e Araca arrasando em “Palpite Infeliz”, “O X do Problema”, “Pra Que Mentir?”, “Três Apitos”, “Com Que Roupa?”, “Não Tem Tradução” e outras maravilhas.

Para completar a ressurreiç­ão, Almirante —antigo companheir­o no Bando de Tangarás— produziu na Rádio Tupi, de abril e agosto de 1951, a série “No Tempo de Noel Rosa”, que mais tarde virou livro.

Pronto: ele voltara, para todo o sempre. Como estátua, nome de rua em Vila Isabel, nome de edifício e de escola, personagem de filme e teatromusi­cal, um deus dos botequins na mitologia carioca.

Ainda hoje um autor popular, mas cuja poesia e crônica de costumes em feitio de samba costumam ser mais apreciadas por ouvidos sofisticad­os. É chamado, com todas as letras e circunflex­os, de gênio. Ninguém estranha ou torce o nariz.

Acaba de sair um livro —“Conversas de Botequim”, pela editora Mórula— em que 20 escritores elegeram 20 canções de Noel Rosa com o desafio de transformá-las em contos. O resultado é surpreende­nte, e mostra como o compositor está vivo. Não mais no limbo, mas tatuado como identidade cultural.

Estranhei que ninguém tenha escolhido “Cor de Cinza”, a mais enigmática das músicas de Noel, talvez o único segredo que reste por revelar nos seus 80 anos de morte. É o “mais belo e hermético poema impression­ista do nosso cancioneir­o popular”, segundo Paulo Mendes Campos: “A poeira cinzenta da dúvida me atormenta/ Nem sei se ela morreu”.

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Eduardo Baptistão/Divulgação Caricatura de Noel Rosa que ilustra capa do recém-editado livro ‘Conversas de Botequim’

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