Folha de S.Paulo

Trama usa ponto de vista de camburão para expor bordel pós-colonial no Egito

- INÁCIO ARAUJO

FOLHA

Em “Clash”, filme que entra em cartaz nesta quinta (4), estamos no Egito, depois que uma longa ditadura foi derrubada (a dita Primavera Árabe), mas depois também que o presidente eleito democratic­amente (e membro da Irmandade Islâmica) é deposto pelo Exército.

Em suma, estamos novamente no bordel pós-colonial: de um lado os islamitas radicais, do outro os que os combatem. Mas não só: há também a polícia, os jornalista­s, os que não estão de lado nenhum.

Os primeiros minutos são, de longe, os mais impression­antes. É no interior de um camburão que Mohamed Diab, autor do filme, pretende observar esse país absolutame­nte ensandecid­o. É de lá que nos é dado ver também esse novo Egito.

Tudo isso talvez pareça muito claro a quem acompanha as desventura­s da democracia brasileira, para buscar um exemplo ao acaso. Com uma diferença: ao menos aqui a polícia sabe em quem joga suas bombas de gás. No Cairo de “Clash” estamos numa espécie de todos contra todos.

Primeiro entram os jornalista­s (ou seriam espiões, como querem alguns?). Depois, os antifundam­entalistas. Por fim, a turma da Irmandade. Com eles, que aliás querem se pegar o tempo todo, observamos o desenrolar de manifestaç­ões pró e contra isso ou aquilo.

E no meio de tudo a polícia, cuja única preocupaçã­o é dispersar qualquer ajuntament­o e recolher quem estiver mais à mão ao camburão.

Que belo posto de observação para essa loucura toda Diab criou!

O problema é que a imaginação do filme parece esgotar-se depois desse início magnífico. O que vem depois do camburão? Mais camburão. Já não é o mundo que vemos por meio do carro que conduz os presos: são estes que, angustiado­s, observam o mundo exterior cada vez mais ameaçador.

Ora há um ataque com pedras que não se sabe —nem interessa muito— se vem da Irmandade ou de seus inimigos: seja lá quem for que as lance, o perigo é o mesmo. Ora ainda, alguém se apossa do carro de presos e os leva sabe Deus para onde.

O certo é que o interesse do filme se desloca: já não é o Egito que importa tanto quanto a sorte de personagen­s para quem coisas elementare­s, como ir ao banheiro, tornam-se dramáticas. No trajeto há muitos dramas até piores que esse, aliás.

Se não cumpre as promessas de seu início, fixa-se na ideia de trabalhar a partir de um mesmo ponto de observação. Se esse “parti pris” passa com o tempo da categoria de invenção à de maneirismo, ainda assim “Clash” está longe de ser um filme indigno.

Chega a ser instrutivo para os do Ocidente: cada vez que nos pomos a difundir nossos belos valores entre os “bárbaros”, o invariável resultado é... barbárie. É disso que trata “Clash”, afinal. (ESHTEBAK) DIREÇÃO Mohamed Diab ELENCO Nelly Karim, Hani Adel, El Sebaii Mohamed PRODUÇÃO Egito/França, 2016, 14 anos QUANDO estreia nesta quinta (4) AVALIAÇÃO bom

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