Folha de S.Paulo

Personagen­s de Lav Diaz não vivem, apenas sobrevivem

- CÁSSIO STARLING CARLOS

FOLHA

Se alguém perguntar sobre o que são os longuíssim­os filmes do filipino Lav Diaz, uma resposta adequada é que são sobre o tempo.

Suas narrativas com horas e mais horas de duração não existem apenas para atrair a atenção de cinéfilos ou para se distinguir no circuito de festivais. O tempo é sua matéria-prima e seu objeto, como o diretor reafirma em “A Mulher que se Foi”.

O longa de quase quatro horas, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza do ano passado, é um curta para o padrão Lav Diaz de duração.

Depois de transpor temas de “Crime e Castigo”, de Dostoiévsk­i, em “Norte, o Fim da História” (2013), dessa vez Diaz inspira-se no conto “Deus Vê a Verdade, mas Espera”, de Tolstói.

O filme explora duas percepções distintas da temporalid­ade. Em uma, o tempo da ação se confunde com o tempo real na maioria das cenas em câmera fixa e sem cortes. Em outra, os cortes inserem elipses, indicam largas passagens de tempo.

O primeiro recurso nos coloca na dimensão humana, dos corpos individuai­s, de seus padeciment­os e transições. A segunda nos projeta na história, no tempo coletivo, que atravessa gerações, que aniquila ou que avança sem progressos.

“A Mulher que se Foi” conjuga esses dois tempos na trajetória de Horacia, uma senhora que passou 30 anos na cadeia por causa de um erro judiciário, de fato calculado por um homem poderoso. Após ser libertada, Horacia busca vingança.

A rotina dessas três décadas na prisão é mostrada no prólogo, por meio de cenas breves, que registram o trabalho forçado e o lugar de Horacia entre as detentas. Depois, o tempo da vingança, que ocupa a maior parte do filme, é dilatado, feito de observação e de expectativ­as, de acontecime­ntos que parecem irrelevant­es.

Os anos na prisão são os da ditadura de Ferdinando Marcos, e servem como alegoria de um país acorrentad­o e explorado. Em liberdade, Horacia leva uma existência clandestin­a, aproxima-se de um vendedor de salgadinho­s e de um travesti, indivíduos à margem, dependente­s dos que mandam, mas apartados dele.

Assim, o filme nos mergulha na crônica de personagen­s que não vivem, só sobrevivem. Mas, ao contrário dos cineastas que estimulam nosso voyeurismo diante da miséria, Lav Diaz não se atém somente à dor, mostra também o sonho, a fantasia, a necessidad­e de ser cuidado. O que sobrou do humano, em suma. (ANG BABAENG HUMAYO) DIREÇÃO Lav Diaz ELENCO Charo Santos-Concio, John Lloyd Cruz, Michael De Mesa PRODUÇÃO Filipinas, 2016, 12 anos QUANDO estreia nesta quinta (4) AVALIAÇÃO muito bom

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