Folha de S.Paulo

Burgueses contra o regime burguês

- REINALDO AZEVEDO

“E A direita, hein? Vai destruir, mais uma vez, a política democrátic­oburguesa”. Quem me envia a provocação acima é um amigo de esquerda, comunista mesmo! Mas é um esquerdist­a raro hoje em dia porque do gênero que estuda. Estudar, nestes tempos, é uma esquisitic­e em qualquer campo do pensamento. Por isso estamos mergulhado­s em anacolutos gramaticai­s, teóricos, conceituai­s, morais...

Em passado já remoto, escreveria sem receio: “Estamos, mais uma vez, diante da evidência da incapacida­de da burguesia dos países atrasados de fazer a revolução burguesa”. Mas eis que me assombro. Eu poderia escrever isso neste 2017, no centenário da revolução bolcheviqu­e naquela Rússia que... não conheceu a Revolução Burguesa!

E eu poderia fazê-lo hoje não porque esteja passando por alguma regressão trotskista ou jamais tenha deixado de ser um deles, como quer a extrema-direita mal saída dos cueiros, que não tem a mais remota ideia do que seja combater uma ditadura. O máximo de risco que correm hoje em dia alguns pivetes ideológico­s é tomar um “block” e afogar as mágoas num beque.

É certo que não tive uma regressão esquerdist­a, mas é inegável que a direita brasileira está passando por uma degeneraçã­o fascistoid­e. Uma quadrilha foi flagrada assaltando o Estado e seus entes, a serviço de uma arquitetur­a política que tinha um partido, o PT, como seu principal pilar.

Sabia-se, no entanto, desde o início, que a legenda não exercia o monopólio da safadeza.

Mas só um parvo ou um malintenci­onado enterraria­m em vala comum, como se fez, todos os políticos e todas as agremiaçõe­s partidária­s. No dia 17 de julho de 2015, não foi anteontem, fiz aqui um alerta (folha.com/no1656874) contra o salvacioni­smo de alguns procurador­es, que passaram a falar em “refundar a República”, como se tivessem recebido tal ordenament­o de Deus.

O PT compreende­u com mais competênci­a do que qualquer outro partido a natureza da nossa “burguesia periférica”.

E escolheu a dedo os protagonis­tas do capitalism­o de Estado. Chegou a engendrar, como resta claro, um plano de poder além-fronteiras. O grito de guerra dessa ordem: “A classe empreiteir­a é internacio­nal”.

Paraarranc­aropartido­dasdobras do Estado, quando este deixa de ser funcional, as mesmas elites que lhe deram suporte nos anos de glória não veem mal nenhum em pinchar no mato a criancinha junto com a água suja. E, só para a surpresa dos idiotas, o partido, que estava fora do jogo, renasce dos escombros.

Demoniza-se o financiame­nto de campanhas por pessoas jurídicas; criminaliz­a-se a relação entre empresas e políticos, que não precisa ser pautada pela sem-vergonhice; desmoraliz­a-se a democracia representa­tiva; tratam-se com descaso direitos e garantias da Constituiç­ão: a presunção de inocência tornou-se sinônimo de impunidade, a concessão de habeas virou evidência de cumplicida­de, e os códigos processuai­s passaram a ser vistos como entraves à Justiça verdadeira.

A cada vez que leio reportagen­s e colunas contra a distribuiç­ão de ministério­s para formar a coalizão governamen­tal, minha melancolia se assanha.

Ou então quando alguém vitupera contra o binômio “apoio político-execução orçamentár­ia”, como se essa não fosse uma prática corriqueir­a —e saudável!— nas democracia­s. Aquele meu amigo diria: “A burguesia está matando a democracia burguesa”.

A propósito: Nicolás Maduro quer uma Constituin­te na Venezuela nos mesmíssimo­s moldes reivindica­dos pelos xucros brasileiro­s: sem partidos!

Lembram-se daquela minha antevisão de que a direita debiloide era a escada para a ascensão da esquerda? Já não se trata mais de uma previsão. Estamos diante de um fato.

Agora resta torcer para que a polícia ocupe, então, o lugar da política e tire esses vermelhos nojentos do caminho! “Vermelhos nojentos?” Do meu livro de frases, “Máximas de um País Mínimo”: ironia não pode ter nota de rodapé. Ou é alfafa.

O máximo de risco para alguns pivetes ideológico­s é tomar um ‘block’ e afogar as mágoas num beque

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