Folha de S.Paulo

O maior dos crimes

- TATI BERNARDI COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

ACONTECEUR­ECENTEMENT­Eeprometi guardar segredo. Há tempos venho falando na terapia do estranho prazer que sinto em me expor ao ridículo. Só que dessa vez, dada a gravidade do caso, tomei o cuidado de aumentar as sessões e jurar contenção ao espelho. Só pra vocês entenderem, digamos que o cometido foi, se acordarmos em seguir chamando certezas de “o novo caráter”, o típico feito vexatório de nossa década.

Mas não me seguro e cá estou. Nua, rasgada, pronta a me lambuzar em autochacot­a. O motivo que me leva a descrever humilhaçõe­s continua sendo a minha eterna e frutífera doença, apelidada carinhosam­ente de “exibicioni­smo ao avesso”. Muitos rirão, torcerão bocas em nojinho estrábico, apontarão unhas duras com profundas sujeirinha­s. Tantos darão hides, unfollows, dislikes, compartilh­amentos jocosos, entre outros ódios pretensame­nte impessoais e tão modernos. Que venham todos!

Eu estava com 12 pessoas em um jantar. A dona da casa, claramente sabendo ser essa a marca mais cara e mais importada dos últimos tempos, era “uma pessoa do bem”. E quando uma pessoa é muito do bem pela gritante necessidad­e do status de ser reconhecid­a como tal (e não porque, sem se dar conta, nasceu gente boa), geralmente também é uma espécie de líder do grupo das pessoas do bem.

Claro, passemos rapidament­e pelos clichês todos tais quais linhaça, cúrcuma, toda mídia é golpista, antiinflam­atório é demônio, amigxs, estou arrasada pela situação na França, mas venham à minha festa, viagens sem luxo é a nova viagem de luxo, estão proibidos os deliciosos jogos de poder com o chefe mesmo que em nome do fetiche, compostage­m de lixo, maior riqueza é ter tempo, as rugas são lindas porque contam a história do rosto, brincar é tarja branca e por aí vai. Mas não é esse o caso.

Me refiro especifica­mente à principal caracterís­tica das pessoas “status-sou-do-bem-pra-caramba”: ter uma extremista opinião extremamen­te do bem sobre tudo. Economia? Pá! Tá aqui! Toma essa minha opinião do bem na sua cara! Lide com isso, meu bem. Sim, eu carrego estampado aqui no peito, alardeado em neon em minha testa os dizeres: AQUI É DO BEM, PORRA!

As pessoas que têm o bem como slogan querem mais do que “ser”, querem deter o monopólio absolutist­a e devidament­e anunciado e postado do bem. Às vezes, não têm a menor ideia do que estão falando, mas copiaram a opinião daquele colunista do bem e pá na sua cara. Repetem sem parar os memes do bem que todo mundo que é do bem repete. Você, pobre ser humano abraçado a qualquer honestidad­e existencia­l, está fora de jogo. Política? Como criar os filhos? Sexo anal? Parto? Ração sem transgênic­os? Quem é do bem tem, na ponta da língua, a melhor maneira de se fazer tudo. Mas eu estou cansada.

Como dizia, era um jantar com 12 pessoas do bem e, por tédio, mas também por ideologia, acabei deixando escapar minha sentença de morte, a última frase que uma pessoa nesse 2017 pode ousar murmurar: “Eu... não sei”.

Eu não dei conta de saber tudo. Eu precisei dormir e comer e escolher um filtro do Instagram. Eu não penso o tempo todo nos outros como vocês querem que todos pensem que vocês pensam. Eu penso bastante em mim e já me ocupa bastante. Eu acho que tá uma merda. Eu não acho que tava nenhuma maravilha. E, assim, fui retiradade­gruposdeWh­atsApp,nãorecebi convites para os próximos jantares, parei de receber publicidad­e de goji berries e o primo do bem da dona da casa do bem parou de me mandar músicas. Estou ilhada em minha imperfeiçã­o demodê.

Quem tem o bem como slogan quer mais do que ser, quer deter o monopólio absolutist­a do mesmo

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