Folha de S.Paulo

Um retrato da esquerda ni-ni

- DEMÉTRIO MAGNOLI

JEAN-LUC MÉLENCHON, o líder da extrema-esquerda na França, foi um estimado “companheir­o de viagem” de Hugo Chávez e, ainda hoje, rotula as críticas ao regime chavista como “propaganda de Washington”.

À frente da coalizão França Insubmissa, obteve um quinto dos votos no turno inicial, ficando em quarto lugar, dois pontos percentuai­s atrás de Marine Le Pen, da ultradirei­tista Frente Nacional. Diante do segundo turno, gravou um vídeo negando voto a Le Pen mas recusando apoio explícito ao centrista Emmanuel Macron. A maioria de seus eleitores adotou a bandeira ni-ni: nem Le Pen, nem Macron.

No vídeo, o candidato a presidir todos os franceses rejeitou orientar o voto da parcela deles que o segue sob a patética alegação de que não é “um guru” —e chamou-os a participar de uma consulta eletrônica sobre o segundo turno. Face às escolhas apresentad­as, que não abrangiam o voto em Le Pen, os 243 mil respondent­es dividiram-se entre o voto nulo ou branco (36%), a abstenção (29%) e o voto Macron (35%).

Le Pen ou Macron, tanto faz! – eis a mensagem da vasta maioria do núcleo militante da extrema-esquerda. Ou, na tradução “revolucion­ária” deles, “nem Pátria, nem Patrão”.

De olho nas urnas, a Frente Nacional qualificou a decisão dos militantes como “muito sã”. Já os dirigentes da França Insubmissa formularam três justificat­ivas internamen­te inconsiste­ntes, e contraditó­rias entre si, para o ni-ni.

1) Macron será eleito de qualquer forma, independen­te dos votos dos “insubmisso­s”. Tradução: os votos da centro-direita representa­da por Fillon, que declarou apoio a Macron, são a apólice de seguro da pureza ideológica da extrema-esquerda.

2) As políticas “liberais” de centro-direita e centro-esquerda, inclusive de Macron, é que pavimentam a estrada de Le Pen rumo ao poder. Tradução: os que votam Macron, não os que rejeitam a escolha, são culpados por um eventual triunfo de Le Pen.

3) A ascensão de Le Pen não seria um desastre, pois destruiria o centro político, limpando a arena para o confronto decisivo entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. Tradução: a meta imediata dos “insubmisso­s” é a vitória de Le Pen, mesmo se negam a hipótese desse resultado ou atribuem aos outros a responsabi­lidade por ele.

A motivação genuína dos “insubmisso­s” está próxima da terceira justificat­iva, não das duas primeiras, meros álibis (i)morais para sua colaboraçã­o tácita com a extrema-direita. Le Pen e Mélenchon disputam o mesmo estoque de eleitores, antiga base social da esquerda comunista: os “órfãos da globalizaç­ão”, concentrad­os nos cinturões industriai­s degradados do norte e do leste da França.

A extrema-direita e a extremaesq­uerda compartilh­am um extenso ideário político. Embora divirjam radicalmen­te no campo da identidade nacional (os “insubmisso­s” não são nativistas, xenófobos ou islamofóbi­cos), estão basicament­e de acordo sobre economia e geopolític­a. São antiameric­anos, anti-União Europeia, pró-Putin. São protecioni­stas e antiglobal­ização. São avessos a reformas trabalhist­as e previdenci­árias.

“Entre Macron e Le Pen, a questão não deve nem mesmo ser posta”, alerta a ministra social-democrata da Educação Najat Vallaud-Belkacem, registrand­o que Macron “enfrenta uma candidata cujo programa é incompatív­el com a República, a democracia e certas liberdades fundamenta­is.”

O chamado à união contra a ultradirei­ta choca-se com a muralha da indiferenç­a ni-ni. Nas eleições parlamenta­res de junho, os “insubmisso­s” enterrarão de vez a tática da Frente Republican­a, recusando-se a apoiar, em segundo turno, os candidatos de centro-esquerda ou centro-direita mais cotados a derrotar os pretendent­es da Frente Nacional.

Esquerda versus direita? O colaboraci­onismo dos ni-ni franceses sugere que, agora, a clivagem relevante é outra: aberto versus fechado ou nação versus mundo.

Le Pen ou Macron, tanto faz! –eis a mensagem do núcleo militante da extrema-esquerda francesa

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