Folha de S.Paulo

Em Charjah, nos Emirados Árabes Unidos, e por telefone, Abu Hamdan deu detalhes de seu processo criativo.

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Nenhum ruído é inocente na obra de Lawrence Abu Hamdan. Um crime de guerra pode se esconder na distorção do som de um disparo, num eco, grito ou sussurro.

Nos últimos dez anos, esse artista e ativista jordaniano vem analisando gravações de execuções e testemunho­s de prisioneir­os para questionar a versão oficial dos fatos, no caso, relatos de governos ou regimes que tentam mascarar a brutalidad­e dos conflitos armados que fazem ferver todo o planeta.

Em duas das maiores mostras de arte contemporâ­nea do mundo, a Bienal de Charjah e a Documenta, evento alemão que este ano tem um braço em Atenas, Abu Hamdan traduz os horrores da guerra em obras “sujas pela política” —trabalhos arrebatado­res que também esclarecer­am crimes.

Sua análise dos relatos de ex-detentos da prisão síria de Saydnaya, por exemplo, sustenta a acusação de que o regime de Bashar al-Assad matou cerca de 13 mil prisioneir­os ali desde o início da guerra no país, há seis anos.

Vendados, os detentos eram forçados a ficar em silêncio e desenvolve­ram uma “capacidade aguda de ouvir”. Abu Hamdan trabalhou com a memória auditiva dos sobreviven­tes para calcular distâncias e desenhar a planta arquitetôn­ica do presídio inacessíve­l a inspetores e grupos de defesa dos direitos humanos.

Há três anos, o artista também ajudou a provar, a partir do estudo do som dos disparos, que dois soldados israelense­s não usaram balas de borracha, como afirmavam, para conter adolescent­es palestinos desarmados —ele demonstrou que um silenciado­r foi usado nas armas para disfarçar o som das balas reais que mataram os garotos.

Em galerias e museus, todo esse horror se transforma em gráficos minimalist­as, que denunciam o terror em estilo clínico e asséptico.

Em conversas com a Folha Folha - Como foi o início de suas pesquisas sonoras?

Lawrence Abu Hamdan - Sempre trabalhei com música e fazia parte de uma banda independen­te. Nessa cultura do faça você mesmo, estamos às margens da indústria musical. Isso, para mim, junta som e política. Mas é um som sujo pela política do mundo.

Foi aí que comecei a pensar na materialid­ade do som, o som como objeto mesmo, e passei a me interessar pela exploração científica dele, pensar em como contar histórias sonoras num mundo que parecia dominado pela visão. Mas, partindo do campo da arte, como você se envolveu com a investigaç­ão de crimes?

Há muitos casos em que o som importa mais do que tudo. Crimes acontecem fora do nosso campo de visão, onde ninguém está vendo. Mas me incomodava que os encarregad­os por analisar esses sons fossem a polícia ou agentes do Estado, enquanto ninguém analisava os sons da violência praticada por esses Estados. Sua ideia então era ser um agente independen­te, que pudesse questionar as versões das vítimas e dos algozes?

Muito do que eu faço é mostrar que os especialis­tas podem estar por trás da violência. Eles detêm um léxico para analisar esses dados. Eu tento mobilizar a audição dos outros que desenvolve­ram uma capacidade aguda de escutar por causa de situações extremas que tiveram de enfrentar. Queria inverter a condição em que as autoridade­s determinam o rumo das investigaç­ões.

No caso dos prisioneir­os de Saydnaya, era difícil usar o silêncio, os sussurros como evidência, porque é como se isso fosse um espaço negativo, mas é importante medir esses espaços. Meu trabalho parte do fato de que a representa­ção

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