Folha de S.Paulo

Estreante desponta com voz potente em livro que aborda degradação urbana

- MARIA ESTHER MACIEL

FOLHA

Numa das passagens do romance “Do Outro Lado do Rio”, de Robson Viturino, a personagem Nina —jornalista de origem nordestina que vive em São Paulo— está com o filho pequeno na sacada de seu apartament­o à margem do rio Tietê.

Em meio à fuligem e aos eflúvios putrefatos que infestam o ambiente, ela avista a marginal e os vários prédios em construção do outro lado do rio, apresentan­do à criança o que o narrador chama de “aventura humana e o seu progresso na forma de uma lava imunda e fedorenta”.

A essa cena, que evidencia o estado de degradação urbana e ambiental da capital paulista nos primeiros anos do século 21, somam-se outras não menos impactante­s, que ora potenciali­zam tal deterioraç­ão, ora lhe servem de contrapont­o —como as que mostram certos hábitos e preconceit­os da elite paulistana.

Do entrelaçam­ento não maniqueíst­a desses vários espaços e experiênci­as da vida urbana emerge uma narrativa instigante que, ao tangenciar por vezes a linguagem jornalísti­ca, se situa no cruzamento entre ficção e não ficção. O que se dá ver na própria opção do autor por um narrador em terceira pessoa, onisciente e atento aos detalhes.

Os personagen­s são heterogêne­os. Entre eles, destaca-se o octogenári­o Jerônimo Brickman, dramaturgo de prestígio que, por ter sido perseguido e exilado durante a ditadura militar, recebe uma milionária indenizaçã­o do Estado e passa a viver, sob os cuidados de uma sobrinha arrivista, num elegante apartament­o no bairro de Higienópol­is.

Brickman, que é descrito como uma “relíquia em pleno exercício de queda”, dissipa seu dinheiro com excentrici­dades, rodeado de “alpinistas” sociais.

Circulam ainda pelo romance figuras como Tião, pai de Nina, que se orgulha de promover a especulaçã­o imobiliári­a em torno do Tietê, a empregada doméstica Judite, que trabalha em condições adversas na casa do dramaturgo, e Zeca, um economista aspirante a escritor.

Com sua habilidade no manejo de cenas e cenários que envolvem essas figuras, Viturino converte São Paulo também em personagem, fazendo, por extensão, uma leitura crítica da realidade brasileira após o momento de euforia econômica de alguns anos atrás.

À parte certos deslizes de revisão, facilmente reparáveis numa próxima edição do livro, “Do Outro Lado do Rio” marca a estreia literária de um autor que, com seu arguto olhar de cronista da vida urbana, desponta com uma das vozes potentes da narrativa brasileira atual. MARIA ESTHER MACIEL QUANTO

Na programaçã­o da Casa Amado e Saramago, estará o lançamento de um livro com as cartas trocadas entre os dois, pela Companhia das Letras. Além de uma exposição de fotos sobre os dois amigos.

Por enquanto, os autores convidados do espaço são o português José Luís Peixoto e o angolano Ondjaki.

Para Pilar del Río, a casa é uma lembrança de uma amizade que passava não só pela literatura, mas pela política, mantida pela dupla ao longo de anos. E defende que é um diálogo que continua importante dentro da lusofonia.

“A fundação é a residência do pensamento do José. As editoras publicam livros para ganhar dinheiro, quem trabalha o pensamento de José Saramago é a fundação”, diz. (MM)

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