Folha de S.Paulo

Acabou o orgulho do brasileiro

- MARILIZ PEREIRA JORGE COLUNAS DA SEMANA segunda: Juca Kfouri e PVC, quarta: Tostão, quinta: Juca Kfouri, sábado: Mariliz Pereira Jorge, domingo: Juca Kfouri, PVC e Tostão

A POUCO mais de um ano da Copa da Rússia talvez seja bom que alguém apareça com outro grito de guerra para a torcida. Aquele do “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor” parece estar bastante comprometi­do, como mostra a pesquisa do Datafolha que cravou 34% de pessoas com vergonha do país.

Motivos, a gente sabe, não faltam. Diante do cenário econômico e político é até pouco, o que nos leva a perceber que “brasileiro não desiste nunca”, como se diz popularmen­te.

Fato é que apesar de ter virado um hino para os torcedores recentemen­te, o famoso grito foi criado em 1949, pelo musicista Nelson Biasoli, professor de uma escola em Ribeirão Preto.

A música, no entanto, nada tinha a ver com o cenário do país naquela década, serviria apenas de reforço para o colégio de Biasoli, que enfrentari­a outro de origem alemã em um campeonato estudantil.

A música demorou 30 anos para ser liberada pela censura, em 1979, mas só na última década ela acabou virando um hino extraofici­al entre os torcedores, não apenas do futebol, mas de outros esportes, e não raramente é entoada em manifestaç­ões políticas.

O Datafolha mostrou que os escândalos da Lava Jato e o alto índice de insatisfaç­ão fizeram crescer também a opinião de que o Brasil é um lugar ruim, péssimo ou apenas regular para se viver, para quase metade da população. É difícil mesmo ter orgulho de algo com uma avaliação tão decepciona­nte.

Um bom termômetro para medir o ufanismo desmedido que sempre exercemos era a quantidade de brasileiro­snoexterio­rpasseando­comcamiset­as da seleção brasileira. É bastante raro hoje e desconfio que a falta de entusiasmo não tenha a ver com aquele fatídico 7 a 1 no Mineirão, em 2014, mas com a goleada que levamos diariament­e em nossas vidas.

Dá para tirar de letra gozação por causa de um esporte, mas ter que explicar o que aconteceu no Brasil, que era a bola da vez e virou o vexame da década, é a última coisa que o viajante de férias vai querer enfrentar num intervalo em que tudo que ele quer é esquecer o momento em que vivemos.

A seleção brasileira voltou a assumir a liderança do ranking da Fifa, em abril, lugar que não ocupava há sete anos. Quinta (4), uma nova atualizaçã­o foi divulgada e continuamo­s lá no topo, não tem para ninguém. Ouço gritos de “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”? Felizmente, não.

Como podemos nos orgulhar de qualquer coisa, quando estamos num vergonhoso 79º lugar no Relatório de Desenvolvi­mento Humano (RDH), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi­mento (Pnud)?

Disputamos lado a lado a medalha do constrangi­mento com o Azerbaijão, país controlado por um governo semiditato­rial, e a Albânia, um dos mais pobres do continente europeu. Que fique claro, os dois estão em melhor posição no ranking.

Se a classifica­ção para a Copa usasse indicadore­s de renda, saúde e educação, como faz o Pnud, não nos classifica­ríamos nem para o Mundial de 2026, que prevê a participaç­ão de 48 países.

Faltando ainda um ano para a Copa, sabemos que existe rejeição quando o assunto é seleção brasileira. Julgamento­s do STF repercutem mais do que os jogos. Resta saber o que pode acontecer em um ano, se ficaremos anestesiad­os pela magia do futebol. Uma coisa é certa, precisamos de um hino mais realista para cantar nos estádios.

É bastante raro hoje ver brasileiro­s pelas ruas vestindo a camisa da seleção de futebol

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