Rio regride 7 anos com explosão de crimes
Com maior taxa de mortes violentas desde 2009 e piora de 34% em relação a 2012, Estado vive clima de descontrole
Especialistas citam esgotamento de ações anteriores, crise nas finanças e bandidos atrás de vácuo de poder
Num programa eleitoral de 2010, o então governador do Rio e candidato à reeleição, Sérgio Cabral (PMDB), descrevia as mudanças na cidade depois de iniciar a pacificação com as UPPs em favelas.
“Eu dizia aos membros do Comitê Olímpico Internacional: não estou preocupado em fazer evento pacífico durante 21 dias. Estou preocupado que este lugar seja pacífico antes, durante e depois dos Jogos. Vamos avançar e terminar o segundo mandato sem nenhuma comunidade com poder paralelo no Rio. É um compromisso meu, com meus filhos, minha família, com os cidadãos deste Estado, comigo mesmo, com Deus.”
Corta para 2017: o Rio vive sensação de descontrole, e a insegurança volta no tempo.
Dados do ISP (Instituto de Segurança Pública), ligado ao governo estadual, mostram que desde 2009 não é tão alta a taxa de crimes com morte violenta —homicídio intencional, roubo seguido de morte, lesão corporal seguida de morte e homicídio após oposição à intervenção policial.
Em 2016, foram 6.248 casos, 37,6 por 100 mil habitantes, maior índice em sete anos. Só a Baixada Fluminense concentra 33% dos crimes.
Comparando: são 1.582 casos a mais do que em 2012 (alta de 34%), “melhor” ano da série histórica do ISP, que começa em 1991. Por outro lado, é abaixo dos 8.631 registrados em 1994, “pior” ano da série.
A situação está se agravando em 2017. No primeiro trimestre, a letalidade violenta aumentou 26% em relação ao mesmo período de 2016; as mortes em operações policiais subiram 85%; as vítimas de homicídios dolosos, 18%.
Exemplos práticos desse cenário estão espalhados.
No Complexo do Alemão, que já foi ícone da pacificação, numa só semana quatro pessoas morreram em operação da polícia para instalar uma torre blindada —e uma quinta morreu em protesto pedindo paz na favela.
Na favela Cidade Alta, a polícia frustrou uma ação de traficantes na última terça (2) numa disputa entre facções criminosas e, como represália, bandidos queimaram nove ônibus em duas importantes vias de acesso à cidade —só nesse dia, foram apreendidos 32 fuzis, quase 10% do total de apreensões de 2016.
O governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) pouco se pronuncia. Em entrevista à rádio CBN, disse que as fronteiras do Rio viraram uma “peneira” para a entrada de armamento. Pediu ao presidente Michel Temer (PMDB) tropas da Força Nacional e foi atendido com um reforço de 100 homens, 0,2% do efetivo da PM. FATORES Especialistas em segurança pública dizem que não é de hoje a tendência de agravamento da situação e apontam um conjunto de fatores para essa deterioração.
Para Ignacio Cano, do Laboratório da Análise de Violência, da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), políticas bem-sucedidas dos anos iniciais da gestão de José Mariano Beltrame (20072016) na segurança pública foram reproduzidas sem avaliações e correções de rumo.
Cita como exemplos as UPPs (hoje há 38: uma inaugurada em 2008, quatro em 2009, oito em 2010, cinco em 2011, dez em 2012, oito em 2013 e duas em 2014), o programa da PM que estabeleceu metas para a redução de mortes decorrentes de intervenções policiais e a criação das delegacias especializadas na investigação de homicídios.
“Sentaram em cima de bons resultados. Houve uma ideia ingênua de que basta implementar essas iniciativas para elas funcionarem. O impacto dessas medidas se esgota e outros fatores negativos acabam gerando o quadro que temos.”
“A ideia por trás da UPP é trocar força por legitimidade, mas, em algumas favelas, a polícia já chegou usando a força”, diz Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança Pública da Universidade Cândido Mendes.
A crise financeira do Rio agrava a situação. Policiais não receberam o 13º salário de 2016, pagamento por atingirem metas nem adicional pelo trabalho na Olimpíada.
Não há recursos para contratar 4.000 PMs já aprovados em concurso. A corporação denuncia o mau estado dos equipamentos para trabalhar. Ao menos 50 policiais já morreram em serviço e em folga, o que equivale a 65% dos policiais mortos nessas situações em 2016 inteiro.
Ramos diz que o crime percebe o vácuo de poder e se aproveita dele. “Estamos vendo uma disputa por território desesperada. Episódios de guerra entre facções estão se multiplicando. Há um clima de ‘o pedaço que eu não pegar alguém pegará’.” ERROS Na quinta (4), o secretário de segurança, Roberto Sá, reconheceu que o projeto de UPP teve erros. “A UPP foi uma tentativa ousada demais do governo estadual com o instrumento que ele tinha de segurança pública local. Talvez hoje estejamos pagando o preço por termos tentado.”
Especialistas consultados pela Folha dizem não ver solução imediata para a crise.
“A curto prazo, tem que haver redução de danos, repensar operações policiais para evitar tiroteios e fazer plano para redução de homicídios. Em algumas áreas, seria melhor se a polícia saísse, como em alguns pontos do Alemão, mas as autoridades veem isso como derrota”, diz Cano.
Ramos cita também a importância de se compor uma rede de investigação eficaz, com apoio da Polícia Federal.
“O Rio regrediu no tempo. Temos um Estado acéfalo, que não paga seus servidores corretamente e uma polícia com a moral muito baixa. Se eles antes tinham a sensação de enxugar gelo, hoje nem isso fazem mais”, afirma o presidente da ONG Rio de Paz, Antônio Carlos Costa.
A violência tem se dissipado por todas as regiões, das mais ricas às mais pobres.
Em 14 de abril, Miguel Zahkour, 19, foi morto em assalto em Laranjeiras, bairro de classe média e média alta. Teve sua moto roubada por homens que o balearam em um sinal de trânsito, a cerca de um quilômetro do Palácio Guanabara, sede do governo.
A 17 km dali, Paulo Henrique de Oliveira, 13, morreu a caminho da casa de um amigo, no Alemão, zona norte. Um parente, que pede anonimato por medo de represálias, diz que ele já estava havia uma semana sem ir para a escola “por causa dos tiroteios”.
Janaína Alves, 34, também perdeu o filho para a violência nas favelas: Jhonata, 15, baleado no morro do Borel. Segundo ela, o garoto foi morto por um policial de UPP. “Meu filho pagou por um erro deles, que destruiu a minha vida.” Questionada, a polícia não respondeu sobre o caso. Baixada Fluminense é a região historicamente com a maior taxa de vítimas ou casos de letalidade violenta Vítimas de letalidade violenta Mortos em operações policiais