Folha de S.Paulo

A ARTE DA MODA

- MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Desde 1983, quando exibiu as criações do estilista francês Yves Saint Laurent, o museu Metropolit­an, de Nova York, não fazia nenhuma exposição individual de um designer de moda vivo.

A japonesa Rei Kawakubo, 74, lendária fundadora da Comme des Garçons, acaba de quebrar esse longo interregno com a abertura de “Art of In-Between” (a arte do in- —uma estonteant­e reunião de mais de uma centena de peças, que pode ser visitada até 4 de setembro.

É preciso atravessar as alamedas neoclássic­as do enorme edifício, recheadas com obras da Antiguidad­e, para chegar à porta do país das maravilhas de Kawakubo.

Entra-se, então, numa espécie de playground futurista, composto de volumes brancos, com formas semelhante­s às que se veem nas lojas da Comme des Garçons. Imerso nessa atmosfera, o público é convidado a passear pelo trabalho da designer, percorrend­o uma aventura vanguardis­ta no território da moda.

A mostra é resultado de um processo de trabalho entre Kawakubo e o curador britânico Andrew Bolton, 50, responsáve­l pelo Instituto de Vestuário do museu. “Foi muito difícil para mim aceitar sua curadoria”, ela diz a ele numa entrevista publicada no catálogo da exposição, costurada com elegância para expor as divergênci­as que surgiram entre os dois. “Foi uma batalha”, ela dispara.

Rei Kawakubo não é alguém que pareça sentir falta de curadores. Tem pleno domínio de seus processos e uma imaginação estética fora do comum. Mas não se faz uma exposição no Metropolit­an —e era exatamente isso o que ela queria— sem respeitar algumas convenções.

A designer rebelde teve êxito em algumas de suas vontades: dispensou, por exemplo, a colaboraçã­o da equipe do museu especializ­ada em criar o conceito e desenhar a arquitetur­a das exposições.

“Acharia impossível ver minhas roupas num espaço desenhado por outra pessoa. Minhas roupas e os espaços que elas habitam são inseparáve­is —são como uma coisa só. Transmitem a mesma visão, a mesma mensagem e o mesmo senso de valores”, diz.

Para criar o que imaginava, Kawakubo reproduziu no Japão um salão na mesma escala e com as mesmas caracterís­ticas do espaço destinado à mostra em Nova York.

Foi ela também quem deu a palavra final sobre a escolha da sede tradiciona­l do Metropolit­an para receber a mostra. A proposta inicial do museu era ocupar uma sala no antigo Whitney —que se transformo­u no Met Breuer.

Sempre disse que não sou uma artista; para mim, desenho de moda é um negócio

PASSADO REVISITADO Mas não se pode ganhar sempre. Kawakubo não queria, mas teve de aceitar uma exposição com caráter retrospect­ivo. Se dependesse dela, a seleção contemplar­ia apenas trabalhos mais recentes.

“Eu entendo o valor de uma retrospect­iva sobre a obra de um artista, particular­mente para uma instituiçã­o como o Metropolit­an, mas para mim é uma impossibil­idade. Em termos do meu trabalho, a única maneira de avançar é não olhar para trás. Há muitas roupas que fiz das quais me arrependo ou que teria feito de maneira diferente”, diz, na conversa com Bolton.

O curador não cedeu. Embora tenha evitado a clássica linha cronológic­a de retrospect­ivas, selecionou coleções que representa­m o melhor da trajetória da designer.

As peças foram divididas em nove núcleos, cada um definido por uma dualidade, como “Ausência/Presença”, “Roupas/Não Roupas” ou “Desenho/Não Desenho” — algo em sintonia com a ideia de uma obra que explora os intervalos entre roupa e corpo, matéria e abstração, ordem e caos, antes e depois etc.

Com frequência, as criaterval­o) ções de Kawakubo suscitam indagações acerca de seu suposto estatuto artístico. O tema é recorrente, aliás, no mundo da moda, em se tratando de criadores mais arrojados, como ela ou seu colega japonês Issey Miyake.

As reações da designer a essa questão mudaram ao longo tempo. Apesar de insistir no espírito inovador de suas roupas, ela sempre rejeitou o rótulo de arte para seu trabalho, dizendo que seria responsáve­l apenas por um negócio no ramo da moda.

Mas, a partir de 2014, decidiu romper com a finalidade utilitária de suas peças e declarar que não criava mais objetos para vestir —“agora você vê a primazia da forma sobre a função”, resumiu. Aproximou-se, assim, da arte.

Não é casual que Kawakubo tenha desejado hospedar a exposição num tradiciona­l e prestigios­o museu de arte. E que tenha escolhido fazêla em vida, para mostrar como e onde gostaria que suas roupas fossem expostas.

Não há dúvida de que se trata de uma artista. Em suas mãos, a moda parece ser de fato (como ela declarou recentemen­te) “uma forma viva de arte”.

REI KAWAKUBO

frase da estilista à revista ‘i-D’, em 2004, destacada na exposição

Moda não é arte; os objetivos da moda e da arte são diferentes e não há necessidad­e de compará-las

em entrevista à ‘Interview’, em 2009

Se artistas algumas vezes se encaixam no padrão de fazer alguma coisa e vender, então moda pode ser arte; se pintores têm de vender suas pinturas por meio das galerias, então talvez vender roupas seja a mesma coisa

para a ‘Switch Magazine’, em 2015

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Roupas da coleção inspirada em rosas e sangue, expostas no Metropolit­an
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Look de coleção com referência­s à bruxaria

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