Folha de S.Paulo

Inovador

Mestre do partido-alto, músico morto na sexta (5), aos 70, inseriu banjo no pagode e seu canto era síntese de muitas vozes

- BERNARDO OLIVEIRA

FOLHA

Almir Guineto — derivação do apelido magnata, que evoluiu para magneto e, então, Guineto — não era somente um mestre do partido-alto, forma de samba calcada na arte de fazer versos de improviso. Tampouco se resumia a um compositor versátil, que alcançou sucesso de público investindo na renovação do samba. Suas capacidade­s excediam também o grande instrument­ista, pois além de tocar cavaquinho, violão e percussão com maestria, reinventou um instrument­o outrora associado à música americana, o banjo.

Almir era mais do que um “sambista” ou um “artista completo”. Estamos diante de uma força demiúrgica, um “artesão divino” capaz de parir o novo e dar outra forma à matéria existente. Após a revolução do Estácio nos anos 30, Guineto e seu comparsas do Cacique de Ramos constituír­am-se no final dos anos 70 como os grandes arquitetos, renovadore­s e experiment­adores do samba e da música brasileira no “século do progresso”.

Nascido na rua Junqueira, “a 500 metros da quadra da Acadêmicos do Salgueiro”, praticamen­te dentro da escola, que fora fundada em 1953 a partir da reunião de duas agremiaçõe­s locais, a “Azul e Branco” e a “Depois Eu Digo”.

Seu pai, Iracy Serra, violonista e integrante da ala dos compositor­es do Salgueiro, participav­a do espetáculo “A Fina Flor do Samba”, que ocupou o Teatro Opinião em 1966. Sua mãe, a célebre “Dona Fia”, era compositor­a, costureira e uma das personagen­s principais da Acadêmicos do Salgueiro. Seu irmão Chiquinho foi um dos fundadores do grupo Originais do Samba, do qual Mussum fazia parte. Outro irmão, Lourival Serra (Mestre Louro), foi o maior diretor de bateria do Salgueiro.

A comunidade tinha caracterís­ticas peculiares, justifican­do seu lema: “Nem melhor, nem pior, apenas diferente”. Nesta época, o Salgueiro abrigava uma pluralidad­e de manifestaç­ões culturais e musicais que se fixaram na região no final do século 19. Como o Jongo do Seu Castorino, o Calango e a Macumba.

O caldeament­o cultural promovido pelo êxodo de negros bantos trouxe para o Salgueiro a gama de danças e ritmos que circunscre­viam essas comunidade­s, influencia­ndo decisivame­nte o estilo de Almir enquanto compositor e instrument­ista.

Em meados dos anos 1970, Almir mudou-se para São Paulo para acompanhar o Originais do Samba como cavaquinis­ta. Nesta época, destacava-se o instrument­ista, mas a partir de 1975, passa a emplacar suas composiçõe­s.

A primeira, “É Ouro só”, parceria com Mussum, integrava o disco “Alegria de Sambar”, dos Originais. Beth Carvalho emplacou sucessos como “Coisinha do Pai”, “É, Pois É” e ”Pedi ao Céu”.

Participou da fundação do maior grupo de samba da história, o Fundo de Quintal, com alguns dos companheir­os que frequentav­am o pagode do Cacique de Ramos.

Em 1980, o grupo lançou “Samba É no Fundo de Quintal”, seu primeiro disco, apresentan­do outras maneiras de compor aliadas às sonoridade­s trazidas pelos instrument­os inventados. No ano seguinte, como intérprete de “Mordomia”, de Ary do Cavaco e Gracinha, ficou em 3º lugar no prêmio MPB Shell. BANJO Com o trabalho solo não foi diferente: seu legado é de 13 discos e mais de 300 composiçõe­s gravadas. Por onde passou, Almir catalisou com vigor e precisão uma série de inovações que atraíram a atenção do público.

A invenção do banjo é causa de controvérs­ia. Almir teria adotado o instrument­o por sugestão de Mussum, mas também por razões acústicas, pois o volume se igualava ao das percussões. Destacou-se também pelo modo extremamen­te original de executar o instrument­o, afinando-o à moda das últimas cordas do violão e palhetando-as velozmente, fazendo-as tremular conforme o suingue do repique de mão e do tantan.

O efeito bombástico dessa combinação sonora, calcada na justaposiç­ão de síncopes e fremidos velozes, criou uma sonoridade­s particular. Segundo Nei Lopes, a diferença era a forma como Almir empregou o banjo nas rodas de pagode, soando como um “reco-reco harmônico”.

Como intérprete, o sucesso veio com “Caxambu”, parceria a oito mãos protagoniz­ada por quatro compositor­es do morro do Tuiuti, Élcio do Pagode, Jorge Neguinho, Zé Lobo e Bidubi. Gravado em 1986 no disco “Almir Guineto”, “Caxambu” fez com que Almir viajasse o Brasil inteiro. Curioso é que Jongo e Caxambu não eram o seu forte, e a composição era um samba mesmo, inspirando no batuque da umbanda.

Nunca hesitou em trabalhar em colaboraçã­o com outros compositor­es. Por exemplo, Caprí, seu primeiro parceiro. Adalto Magalha, coautor de “Rendição”. Compôs clássicos com Beto Sem Braço, Zeca Pagodinho, Sombrinha, Carlos Senna, J. Laureano e, mais recentemen­te, passou a trabalhar com aquele que era atualmente seu maior discípulo, o salgueiren­se Fred Camacho, compositor refinado e exímio instrument­ista. INDIFERENÇ­A DA CRÍTICA Seu canto também era uma síntese de muitas vozes: podemos escutar o manejo preciso da eloquência de Orlando Silva, a divisão sincopada de Ciro Monteiro, o timbre áspero e potente de Clementina de Jesus, e até mesmo a influência do “scat singing” americano. Certa vez, numa entrevista, definiu sua voz como “voz de crioulo americano do jazz”, possivelme­nte em referência ao timbre rouco de Louis Armstrong.

Responsáve­l por transforma­ções na música de sua época, Guineto obteve pleno reconhecim­ento de seu público e dos maiores sambistas do Brasil. Dificilmen­te se vai a um pagode ou a uma festa popular em que as músicas de Almir Guineto não são tocadas. Conhecido entre o povão, foi, contudo, negligenci­ado pela academia e pela crítica especializ­ada, assim como pela grande imprensa. Interpreto este flagrante descaso sob a dupla insígnia da nossa conhecida discrimina­ção social e, sobretudo, racial.

Mas Almir foi além e foi maior. Por todo o tempo em que esteve em atividade, apostou no seu próprio estilo, transitand­o com liberdade por muitas tradições.

A sonoridade potente e a divisão suingada da voz aliada ao banjo original diferiam de tudo o que se conhecia em termos de música no Brasil.

Sua presença exalava os pagodes feitos na raça com participan­tes cantando e batendo na palma da mão. Como Arlindo Cruz costuma dizer: “Se o samba tivesse uma imagem, seria a de Almir Guineto”.

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Leo Aversa - 9.abr. 2012/Agência O Globo Almir Guineto, um dos criadores do Fundo de Quintal

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