Folha de S.Paulo

O fardão e as chinelas

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RIO DE JANEIRO - Encostado ao ferro em frente ao fosso da geral do Maracanã lotada, Alberto Mussa torcia. Na confusão para entrar no estádio, já havia perdido as chinelas. Naquela exata posição, ele teve o ângulo de visão perfeito para acompanhar o milagre: o drible e o gol de Nunes, o terceiro, na vitória de 3 a 2 do Flamengo sobre o Atlético-MG, na decisão do Brasileiro de 1980. No meio da massa, Mussa chorou de alegria, descalço.

Hoje, sua coleção de chinelas do tipo havaianas ultrapassa os 20 pares. Apenas uma única vez eu o vi de sapatos, na entrega de um prêmio na Biblioteca Nacional. Com a mesma informalid­ade, ele vem construind­o sua obra literária, com destaque para um compêndio mítico sobre o Rio de Janeiro, o qual se compõe de cinco romances policiais de fundo histórico. O quarto, “A Hipótese Humana” (Record), acaba de sair, tendo como cenário o Catumbi de 1854.

Um crime de adultério acontece e a investigaç­ão começa. Na época, a onda criminal que engolfava a cidade era bem diferente da atual: as autoridade­s se preocupava­m com famigerado­s capoeiras. O nível de violência era baixo. A cada mil prisões, apenas uma envolvia homicídio —e somente seis casos de assalto à mão armada. Ia-se preso por vadiagem, arruaças, bebedeiras, batucadas. O que leva o narrador ao seguinte comentário: “Quem de fato enchia as cadeias cariocas era gente que se divertia”.

Uma das epígrafes do romance evoca Machado de Assis: “Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira”. Alberto Mussa se esforça em conhecer e dá provas disso com sua literatura ao mesmo tempo popular e de alta qualidade.

Existe um movimento para fazer de Mussa imortal da ABL. Ele resiste. Diz que, embora rubro-negro, não possui tendências gregárias. Quem sabe se, ao vestir o fardão, o escritor possa continuar de havaianas? NABIL BONDUKI

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