Folha de S.Paulo

ANÁLISE Episódio sepulta a ideia da Lava Jato como agente de operação seletiva

- MARCUS MELO

FOLHA

O governo estava sob a espada de Dâmocles e o risco que corria era binário.

Ou entraria para a história como reformista acidental, ancorado em maioria congressua­l cuja coesão derivava do seu próprio risco coletivo. Ou seria abatido pelo tsunami das delações premiadas.

O diabo estava no timing – da morosidade do devido processo legal —e este aparenteme­nte favorecia a travessia do deserto. Mas a aposta era que o sucesso nas reformas poderia tornar a morte menos dolorosa, ou talvez até com certa dignidade.

O episódio significa uma ação ousada e exitosa de instituiçõ­es de controle, agindo de forma eficiente e amparada na lei e sob a supervisão da Suprema Corte. Surpreende­u o país ao fornecer a bala de prata que acelerou a inexorável dêbacle.

As repercussõ­es imediatas serão de grande monta, sobretudo no que diz respeito ao ritmo das necessária­s reformas. A instabilid­ade resultante pode levar a conclusões infundadas. Mais uma vez é uma questão do copo meio vazio ou meio cheio.

Longe de constituir crise institucio­nal, o episódio representa mais um passo na afirmação da lei. No médio prazo, essa ação sepulta a ideia da Lava Jato e da mídia como agentes de uma operação seletiva e antipopula­r. Pelo contrário, as legitimará, restaurand­o um certo senso de justiça. E em certo sentido contribui para pacificar um país marcado por forte polarizaçã­o.

As propostas maximalist­as de reinvenção institucio­nal –como as de eleições diretas já–, embora tenham algum apelo normativo in abstrato, devem ser abandonada­s porque violam a ordem constituci­onal vigente.

A anulação da chapa Dilma/Temer já está pautada e seguiu em ritmo célere e não antecipado. Se efetivada, a anulação será outro avanço institucio­nal, dadas as evidências massivas de uso de propina na eleição presidenci­al. Embora tenha difícil viabilidad­e política, o impeachmen­t poderá ser pautado, mas o desenlace provável serão eleições indiretas.

A historiogr­afia argentina produziu um argumento influente sobre a derrocada histórica do país: os efeitos de longo prazo da chamada “década infame”, na qual se praticou uma fraude de enormes proporções nas primeiras eleições sob a democracia de massa na década de 30.

Como resultado, a democracia representa­tiva e a regra da lei foram deslegitim­adas, e o estatismo plebiscitá­rio vicejou. O conjunto de ações a que assistimos no Brasil nos últimos anos pode ter o efeito oposto.

MARCUS MELO

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