Folha de S.Paulo

Dias melhores | MINHA HISTÓRIA O HOMEM DA MALA AZUL

Educador leva, há quase 40 anos, livros para crianças de comunidade­s longínquas, áreas rurais e aldeias indígenas nas Américas e na África

- MARILICE DARONCO COLABORAÇíO PARA A

EM SANTA MARIA (RS) FOLHA,

Nasci no Pantanal, em Mato Grosso. Meu irmão já ia na escola, e eu ainda não tinha idade para isso mas, mesmo assim, ia com ele. Parece poético, mas era rodeado de jacarés, garças e tuiuiús que tentavam atacar a gente.

Minha infância foi cercada de livros, de discos, de gente doida que viaja de uma hora para outra. Quando eu tinha 6 anos, já tinha vivido numas 15 cidades.

A leitura me criou muitos desejos. Eu lia muito sobre a África, a Índia, sobre o cinema de Nova York. Tinha uma vontade imensa de conhecer esses lugares, e depois morei em todos eles.

Iniciei meu trabalho com aldeias indígenas em Mato Grosso. Depois fui para o Rio de Janeiro, cursei arte e educação, e quando voltei me enfiei na floresta amazônica e lá fiquei muito tempo.

Trabalhei pelo país afora, em núcleos do sertão, na zona rural. As escolas eram precárias, telhado de palha, pegavam fogo, não sobrevivia­m a uma estação. Então, eu le- vava meus livros e os professore­s copiavam as ilustraçõe­s com carbono.

Teve uma professora que tinha apenas duas saias. E uma dela tinha desenhos, então ela pegou essa saia, cortou os quadradinh­os das ilustraçõe­s e fez 16 livros. Eu disse para ela: “Mas agora você ficou com uma saia só”, e ela me respondeu que sim, mas que agora ela tinha 16 livros.

Comecei a pensar que tinha de arranjar um jeito de os livros poderem viajar. Como uma quantidade menor de livros atinge uma quantidade maior de pessoas? Montei a primeira mala de leitura.

Em 1980, montei as primeiras 270 malas, com recursos da Unicef. Não sabia que aquilo ia me dar o mundo: fui fazer malas no Arizona, Novo México e Montana [nos EUA], trabalhei em Angola para o Itamarati e desde 2008 sou indicado pelo governo de Angola ao prêmio Astrid Lindgren Memorial (Alma), que reconhece o esforço em promover a leitura para crianças.

Hoje, já perdi a conta de quantas malas espalhei pelo mundo. Elas estão em todos os países de língua portuguesa. Na minha última viagem à África, levei 40 malas com 2.400 livros.

Quando cheguei a primeira vez lá, as crianças nunca tinham visto um branco. E as histórias que elas conheciam de branco eram terríveis. Quando eu chegava, parecia um bando de formigas, que fugia para todos os lados. Havia crianças que cuspiam na mão e passavam na minha pele, para ver se eu não estava pintado de branco.

É por isso que entendo que você nasce educador. É preciso ter a missão, é preciso abrir mão de certos confortos para viver essa aventura. Já peguei malária, dengue, carrapato, piolho.

Em Angola, fui preso porque carregava uma mala de livros e os policiais que me abordaram não sabiam o que era livro e acharam que eu estava transporta­ndo alguma mercadoria ilegal.

Monto cada mala pensando em quem vai ler as histórias. Às vezes, chego a ler 200 livros e não seleciono nenhum para as malas. Mas isso não quer dizer que eles não são bons, apenas que eles não se enquadram na proposta que estou desenvolve­ndo.

Gosto de misturar autores contemporâ­neos brasileiro­s, clássicos da literatura universal, gibis, imagens, sempre pensando a quem me dirijo.

Costumo dizer que hoje moro em Portugal e no Brasil, porque passo a maior parte do tempo por lá, mas também no Brasil, mantendo as atividades na zona rural, nas comunidade­s que precisam de incentivo para montarem locais que sirvam para a promoção da leitura.

Assim como há quem se emocione com os livros, porque a literatura é feita para isso, para tocar nossas emoções, me emociono com quem descobre o mundo da leitura. Um brilho no olho de uma criança com um livro toca o meu coração e faz ver que todo o caminho, desde a primeira mala, valeu a pena.

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