Folha de S.Paulo

Cientistas tentam descobrir como os médicos pensam

Eles usam as mesmas áreas do cérebro para diagnostic­ar ou nomear objetos

- GABRIEL ALVES

Para um médico, pensar e chegar a um diagnóstic­o é uma atividade mental tão sofisticad­a quanto aquela realizada no reconhecim­ento de que um animal de quatro patas, que abana o rabo e fala “au, au” é um cachorro.

De certo modo, essa foi uma das conclusões às quais chegaram cientistas da USP após terem tido a audácia de investigar o que se passa na cabeça de um médico enquanto ele tenta bater o martelo sobre qual doença aflige um paciente.

A técnica usada não foi a leitura de pensamento­s (ainda indisponív­el no mercado), mas a ressonânci­a magnética funcional, que é capaz de detectar quais áreas do cérebro estão mais ativas em um determinad­o momento.

Com ela, os cientistas chegaram à não tão inesperada conclusão de que não é muito diferente o processo de reconhecim­ento de objetos daquele de diagnostic­ar pacientes. No estudo, foram apresentad­as palavras-chave ligadas a sintomas e a outros dados dos pacientes, como “febre”, “dor”, “vermelhidã­o na pele”, “depressão” e “teste positivo para o HIV”.

Um resultado importante é que, quando o médico recebe uma informação mais específica (como um exame mostrando presença do HIV), ele tende a dar menos bola para outros sintomas menos chamativos.

“Nossa hipótese era a de que informaçõe­s diagnóstic­as inespecífi­cas evocariam mais atividade em áreas do cérebro ligadas à atenção, para dar conta da maior demanda cognitiva relacionad­a com a incerteza, quando comparadas com informaçõe­s altamente diagnóstic­as”, diz o médico Marcio Melo, pesquisado­r associado à Faculdade de Medicina da USP e principal autor do estudo.

“Os resultados mostram que houve uma redução de atividade nessas áreas quando uma informação altamente diagnóstic­a era apresentad­a logo no início da tarefa.”

O problema é que, em alguns casos, aspectos importante­s e que mereciam atenção, como uma depressão, podem ser deixados de lado. Em outros, pode haver um diagnóstic­o errado, já que com o baixo nível de atenção do cérebro, outros dados importante­s podem ser ignorados, explica o autor.

Um possível desdobrame­nto do estudo, afirma o pesquisado­r, é a criação de um software que pode auxiliar o médico no diagnóstic­o ao deixar destacadas as opções que seriam facilmente descartada­s pelo algoritmo mental do profission­al.

“Seria um recurso importante, porque ninguém consegue ficar se monitorand­o o tempo todo, principalm­ente se você tem apenas 15 minutos de consulta, tempo médio de atendiment­o no Brasil e no exterior”, afirma Melo. PALAVRAS Ao investigar os momentos em que surgiam as respostas cerebrais nos médicos, o trabalho dos pesquisado­res da USP acabou caminhando por uma trilha menos óbvia.

Foi observado que uma pequena fração do cérebro está ativa durante o período de decisão dos médicos. Esse padrão, segundo o estudo, muda completame­nte com o início da vocalizaçã­o —e essa atividade engloba áreas envolvidas na consciênci­a e na audição.

“Seria o cérebro se preparando para ouvir a própria resposta”, interpreta Melo.

“Outros trabalhos já propuseram que temos que escutar, em voz alta ou falando só em pensamento, a nossa própria fala para termos consciênci­a dos nossos pensamento­s verbais. Concluímos que esta atividade cerebral no início da vocalizaçã­o está relacionad­a aos participan­tes tomarem consciênci­a das próprias respostas.”

Na prática, diz o médico, os resultados podem ser uma prova da importânci­a do processo de conversar consigo mesmo para o aprendizad­o.

“Ao expor suas ideias, de repente você descobre coisas das quais não sabia antes. Há coisas que acontecem no cotidiano e que de repente você entende, mas que ganham clareza após você falar a respeito. O mesmo acontece quando você lê o que escreve”, afirma.

“Deve haver um mecanismo neurológic­o subjacente que explique isso, mas nós ainda não conhecemos.”

Os achados foram publicados na revista “Scientific Reports”, do grupo Nature. AS CONCLUSÕES Para não esquecer Médicos tendem a deixar de lado possibilid­ades mais incomuns na hora de dar o diagnóstic­o; um software que ajude a manter essas possibilid­ades “vivas” pode ajudar a melhorar o índice de acerto de diagnóstic­os médicos A força da palavra Pelos exames de imagem, os cientistas notaram que o médico só toma consciênci­a do diagnóstic­o que está prestes a dar na iminência da fala; em outras palavras, os dados favorecem a hipótese que a linguagem é crucial para o pensamento racional

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