Folha de S.Paulo

CRÍTICA Narrativa calcada em Sade termina por traí-lo

Personagen­s do erótico ‘As Onze Mil Varas’, de Apollinair­e, são garatujas; nos bons momentos, diverte vagamente

- SÉRGIO RODRIGUES

FOLHA

Em 1907, antes de se consagrar como poeta e uma das vozes mais importante­s do modernismo literário francês, Guillaume Apollinair­e (18801918) publicou sem assinatura uma narrativa erótica chamada “As Onze Mil Varas”, proibida na França até 1970 e que ganha agora nova edição no Brasil.

Personagem da boêmia parisiense, Apollinair­e era divulgador e admirador do marquês de Sade, o devasso de fins do século 18 que a intelectua­lidade francesa iniciava então a revaloriza­r intensamen­te. Em espírito de brincadeir­a, produziu uma novela pornográfi­ca que, calcada no papa da literatura libertina, termina por traí-lo.

“As Onze Mil Varas” acompanha as aventuras de um autoprocla­mado príncipe de fajuta nobreza, o romeno Mony Vibescu, que viaja pela Europa colecionan­do parceiros sexuais de ambos os sexos e todas as idades.

Vibescu é tão insaciável quanto flexível. Sodomiza e é sodomizado com a mesma desenvoltu­ra. Curte S&M, coprofilia, pedofilia —inclusive com um bebê— e assassinat­o. Todos os personagen­s com os quais cruza (o duplo sentido é bem-vindo) têm inclinaçõe­s semelhante­s. A maioria dos encontros carnais, mesmo os que acabam em morte, é consensual.

Antecipand­o clichês da pornografi­a audiovisua­l que mal raiava no horizonte, o narrador tem pressa. Nenhum personagem vai além da garatuja e nenhum tempo é perdido com “clima”.

O tom de farsa é intenciona­l, mas o tédio que emana do enfileiram­ento de atos de violência sexual —efeito que também assombra Sade— é um problema literário, por produzir no leitor um entorpecim­ento que vai na contramão tanto da excitação quanto do escândalo e do xequemate moral pretendido­s.

No caso de Apollinair­e, esse problema é atenuado pelo humor. O livro tem um jeitão de chanchada que dispensa por completo as digressões filosófica­s do marquês e passa longe de sua, digamos, severidade libertino-libertária.

Isso se evidencia já no título, que no original brinca com a semelhança entre as palavras “verges” (varas) e “vierges” (virgens). Uma solução menos traidora em nossa língua seria “vergas”, adotada em Portugal. Mas “As Onze Mil Varas” é o título consagrado nas edições brasileira­s.

A alma brincalhon­a da novela termina por limitar sua potência transgress­iva. Sem “páthos”, a narrativa tornase uma gincana de bizarrices que aspira a uma vitória quantitati­va que não vem.

Dez anos após a morte de Apollinair­e e com ingredient­es semelhante­s, Georges Bataille daria à literatura erótica francesa um livro muito mais profundo e perturbado­r, com personagen­s de verdade —“História do Olho”.

Como peça de humor negro, “As Onze Mil Varas” consegue, nos melhores momentos, divertir vagamente. Tem adeptos, como provam suas sucessivas reedições, mas é pouco mais que uma curiosidad­e biobibliog­ráfica na carreira do poeta de “Álcoois”. AUTOR Guillaume Apollinair­e TRADUÇÃO Letícia Coura EDITORA Iluminuras QUANTO R$ 42 (144 págs.) AVALIAÇÃO regular

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