Folha de S.Paulo

A autoajuda me autoprejud­ica

- RICARDO ARAÚJO PEREIRA COLUNISTAS DA SEMANA: sábado: José Simão, domingo: Marcius Melhem, segunda: Gregorio Duvivier, terça: José Simão quarta: Reinaldo Figueiredo, quinta: José Simão

A FILOSOFIA oriental que valoriza o silêncio e a quietude não tem, para mim, nada de exótico, uma vez que foi nesse ambiente cultural que cresci. Creio que minha avó era a única budista mahayana de São Martinho de Coura. Na verdade, ela não sabia que o era, mas evidenteme­nte partilhava aqueles valores. As frases que mais ouvi na infância foram “Está sossegado um minuto, por amor de Deus” e “Ó, Ricardo, cala-te”. Está ali o amor pelo silêncio e o elogio da quietude com uma intensidad­e da qual a maior parte dos gurus não é capaz.

Mas creio que a razão pela qual minha avó foi a pessoa mais importante da minha vida é esta: ela era uma espécie de reverso dos livros de autoajuda. Em vez de “ama-te”, propunha: “sê impiedoso contigo”. Não com essas palavras. Tinha a segunda série e não era dada a máximas. Mas foi a dureza dela que me ensinou uma coisa preciosa que, provavelme­nte, horroriza todos os profission­ais da saúde mental: desvaloriz­ar os meus sentimento­s. Primeiro, por serem sentimento­s; segundo, por serem meus. Primeiro, porque a maior parte dos sentimento­s goza de um prestígio que não merece; segundo, porque a minha importânci­a é bastante relativa.

Esse estratagem­a emocional afeiçoou-se muito bem ao meu caráter. Um dia hei-de escrever um elogio do recalcamen­to, cuja má reputação não compreendo. Não consegui muito na vida, mas devo tudo o que obtive a uma autoestima baixa. Quem se tem em pouca conta esforça-se mais, desconfia de si mesmo, não perde de vista a sua insignific­ância. O melhor modo de não sermos ridículos é mantermos presente que somos ridículos.

Normalment­e, é nesta altura da conversa que sou acusado de insensibil­idade. O que se passa é o contrário, acho eu. Acontece que não sou suficiente­mente insensível para aceitar os conselhos que costumam vir escritos nos livros de autoajuda. Acho a ordem “ama-te” grotesca. Estou convencido de que isto do amor não se decreta. Desse ponto de vista, as sugestões “ama o sr. Teixeira da papelaria” e “ama-te” parecem-me igualmente absurdas. Mesmo que uma pessoa tenha razões para se amar, creio que a boa educação ditaria que procurasse contrariar esse impulso sórdido.

Todas as cartas de amor são ridículas, já se sabe. As mais ridículas de todas são as que eu escreveria para mim mesmo, se minha avó não me tivesse dotado dessa caracterís­tica tão higiênica, decente e fundamenta­l num mundo civilizado: a vergonha.

O melhor modo de não sermos ridículos é mantermos presente que somos ridículos

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Luiza Pannunzio

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