Folha de S.Paulo

Sobre golpes e eleições

Como ocorreu sob Dilma, forças políticas buscam saída pragmática para a crise; com ou sem Temer, governista­s tendem a dar as cartas

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Nota-se, na militância que ainda chama de golpe o impeachmen­t de Dilma Rousseff (PT), um júbilo revanchist­a com as agruras agora vividas por Michel Temer (PMDB).

Por natural que seja, tal sentimento não deve deixar de conflitar-se com arraigadas percepções da realidade. Afinal, os setores supostamen­te culpados pelo naufrágio do poder petista —a Lava Jato, a imprensa, o mercado— desempenha­m os mesmos papéis de antes.

O aparato policial investiga (não sem alguma dose de abusos), os veículos de comunicaçã­o reverberam (além de apresentar­em suas próprias apurações e pontos de vista), os agentes econômicos protegem seus interesses. O processo por vezes é cruel, mas mantém-se nos limites do jogo democrátic­o.

Golpe não houve, tampouco está em curso. O impeachmen­t respeitou, ao longo de meses, os ritos jurídicos e legislativ­os. Nada mais legítimo que Temer, igualmente, valha-se de todos os recursos e garantias legais à sua disposição.

Instituiçõ­es, no entanto, nunca serão engrenagen­s impermeáve­is às forças políticas. Dilma não foi à lona apenas por ter fraudado de modo explícito o Orçamento —o que, para esta Folha, não justificav­a punição tão traumática.

Seu destino poderia ser outro se a recessão que produziu e o estelionat­o eleitoral que cometeu não tivessem esvaziado sua sustentaçã­o popular e legislativ­a.

Numa nota de ironia, cumpre re- cordar que algumas das derradeira­s tentativas de salvar seu mandato partiram do empresaria­do, que se empenhava em evitar o agravament­o da derrocada econômica.

Não diferem, na essência, os cálculos que ora se fazem em torno dos desfechos possíveis para a crise do governo Temer.

Este originou-se dos votos de mais de dois terços do Congresso, agregando uma expressiva maioria ancorada na centro-direita. Mesmo sob o impacto da Lava Jato e de dissidênci­as recentes, essa coalizão ainda reúne condições de ditar o rumo dos acontecime­ntos.

Só com seu aval poderão ser abertos processos, por crime comum ou de responsabi­lidade, contra o presidente; caso este venha a ter sua chapa cassada pela Justiça Eleitoral, seu mandato será concluído, segundo a Constituiç­ão, por um nome escolhido pelos deputados e senadores.

Em defesa dessa previsibil­idade já começam a mobilizar-se grupos que temem uma recaída recessiva do país. Preocupam-se com a hipótese de avanço de uma emenda constituci­onal ou de uma tese jurídica que possibilit­e a realização, já, de eleições diretas.

Argumentam, com certa razão, que não é o melhor costume mudar as regras durante o jogo; nem será surpresa se a velha acusação de golpe voltar à tona.

Mais uma vez, não é disso que se trata. A emenda só avançará com respaldo das ruas, o que a diferencia de conchavos parlamenta­res; seu objetivo não é beneficiar este ou aquele de forma casuística. Ao invés de restringir um direito —no caso, ao voto—, o texto o universali­za. Em momento tão delicado, é opção que não convém descartar.

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