Folha de S.Paulo

ANÁLISE Tratamento de dependente­s fica de fora do foco mais uma vez

- CLÁUDIA COLLUCCI

Enquanto mais uma vez, a Prefeitura de São Paulo e o governo do Estado disputam os holofotes em mais uma operação policial na cracolândi­a, a questão principal, como tratar os dependente­s químicos, segue em aberto.

O programa Redenção, anunciado pela gestão municipal de João Doria (PSDB), ainda não passa de uma carta de intenções, mas já recebeu críticas. Para o Ministério Público Estadual, o projeto apresenta “inconsistê­ncias” e “falta de referencia­l teórico” e precisa de “modificaçã­o profunda”.

Mais de 20 anos depois de o crack se instalar na capital paulista e em outras regiões do país e atingir mais de 1 milhão de pessoas, ainda não existem programas consistent­es para enfrentá-lo.

A questão é que não dá para pensar em resolver o problema da droga em si sem olhar para um outro bem maior: a pobreza e todos os problemas associados a ela.

A vasta maioria dos dependente­s de crack tem histórico de discrimina­ção, violência doméstica, abuso sexual e frágeis vínculos familiares.

Atacar apenas a substância química (no caso, o crack) não fará desaparece­r os problemas associados a ela.

Muitos dos usuários estão tão absurdamen­te à margem da sociedade que o crack (assim como a bebida e outras drogas) servem de “remédios” para encararem a brutalidad­e do cotidiano.

Ao mesmo tempo, programas de assistênci­a social não devem ser entendidos como sinônimos de tratamento da dependênci­a química.

Abrigo e alimentaçã­o são muito importante­s para os usuários de crack em situação de rua, mas abordagens psicossoci­ais, remédios para casos específico­s (como depressão e ansiedade), e eventuais internaçõe­s para situações de risco (surtos psicóticos) são igualmente fundamenta­is nesse processo.

Ter a abstinênci­a como único indicador de sucesso do tratamento do usuário de crack é um outro equívoco.

Segundo estudos em saúde mental, para muitos dependente­s do crack, especialme­nte os que vivem nas ruas, programas de redução de danos podem ser efetivos.

É possível que as pessoas tratadas dessa forma não parem de usar drogas completame­nte, mas ao menos conseguem estabiliza­r suas vidas. Isso traz mais segurança para elas e para a comunidade.

Em Vancouver (Canadá), por exemplo, são considerad­os indicadore­s de sucesso desses programas a redução de pequenos delitos e de internaçõe­s por problemas ligados à droga, assim como a estabilida­de na moradia.

Mas, segundo disse em entrevista à Folha a enfermeira canadense Liz Evans, qualquer serviço com esse perfil estará fadado ao fracasso se não ouvir os usuários.

“Porque será aquilo que nós queremos, e não o que eles precisam. A redução de danos é sobre aceitar as pessoas, e não ajudá-las a ser aquilo que você quer que sejam”, declarou.

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Marlene Bergamo/Folhapress Praça Princesa Isabel, próxima à cracolândi­a, concentra usuários na noite desta segunda

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