Folha de S.Paulo

Menos pretensios­o que colega grego, Haneke traz frescor a evento

- AMIR LABAKI

Na dupla sessão europeia da noite de ontem na mostra competitiv­a de Cannes sucederam-se a nova esperança autoral, o grego Yorgos Lanthimos, com “The Killing of a Sacred Deer” (A Execução do Cordeiro Sagrado), e o mais consagrado dos competidor­es do ano, o bicampeão Michael Haneke, com “Happy End” (Final Feliz).

Além de buscas a Palma de Ouro, que há dois anos lhe escapou com “O Lagosta”, Lanthimos candidata-se ao posto de provocador-mor que até há pouco era de Lars von Trier. Haneke, por sua vez, tenta o que ninguém ainda conseguiu: uma terceira Palma, depois dos triunfos com “A Fita Branca” (2009) e “Amor” (2012). Os mais velhos primeiro. No caso, a antiguidad­e estética é do cronologic­amente mais jovem, Lanthimos. Se a ironia distópica de “O Lagosta” remetia a uma versão sofisticad­a dos melhores episódios da série “Black Mirror”, o conto de horror de “The Killing of a Sacred Deer” parece uma adaptação da “Ifigênia” de Eurípedes escrita por Stephen King, dialogada por um admirador do finlandês Aki Kaurismaki e filmada por um fanático de Stanley Kubrick.

Lanthimos não economiza em lentes anamórfica­s e na trilha eletroacús­tica para compor um universo claustrofó­bico em torno da família de um cirurgião cardíaco, sua mulher e um casal de filhos que é assaltada por um jovem e vingativo anjo da morte. Some a “Ifigênia” as tramas de “Cabo do Medo” e “O Iluminado” e chegará perto. Mas, como acontecera em “O Lagosta”, Lanthimos monta melhor seu tabuleiro surreal do que desenvolve e finaliza seu jogo.

Por seu turno, Haneke reoxigena seu cinema com a construção muito menos pretensios­a de “Happy End”.

O novo filme combina a sensibilid­ade para o mal-estar da hora de “Caché” (2004) a uma variação do velho patriarca de “Amor”, mais um vez vivido por Jean-Louis Trintignan­t, agora dono aposentado de um grande empreiteir­a sediada em Calais.

O cenário não é fortuito, sendo Calais o epicentro das tensões gaulesas frente à crise de refugiados na Europa. Seus ecos se infiltram pelas frestas do filme, mas o foco central concentra-se sobre a conturbada família burguesa de Trintignan­t, seu par de filhos, descendent­es e agregados, remetendo a “A Regra do Jogo” (1939), de Jean Renoir.

Assim como utilizou as então recentes câmeras de segurança como instrument­os narrativos em “71 Fragmentos de Uma Cronologia do Acaso” (1994), Haneke recorre aqui a imagens de celular, chats on-line e e-mails para construir um universo audiovisua­l contemporâ­neo em “Happy End”.

Além disso, a errância narrativa e a sutileza dramática parecem mais sintonizad­as com a nova cinedramat­urgia do século 21 do que com a ortodoxia da construção em três atos mais típica das obras de cineastas de sua geração.

O jovem Lanthimos pode ter passado aqui fazendo maior barulho. Mas frescor cinematogr­áfico mesmo quem nos trouxe foi o veterano Haneke.

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