Folha de S.Paulo

Brasília em chamas

- ALESSANDRA OROFINO COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

NÃO GOSTO de manifestaç­ões violentas. Por uma série de razões. Primeiro, porque são excludente­s –há uma série de pesquisas que mostram que ondas de protesto têm muito mais chance de ganhar escala se forem pacíficas, sobretudo entre cidadãos mais velhos, adolescent­es e mulheres. Segundo, porque o emprego da violência gera, de fato, farta munição retórica para o “outro lado”, podendo subsidiar, inclusive, o acirrament­o de medidas de exceção e a militariza­ção da repressão.

Os liberais que inventaram a democracia representa­tiva –e seu jeito persistent­e de assegurar a transição pacífica de elites no poder– também não gostavam de violência. Contra ela, defendiam, em geral, o voto. Uma população que vota não precisa cortar a cabeça da rainha. Pode simplesmen­te escolher outro monarca, dentre uma série de opções delimitada previament­e por obscuros mecanismos de reprodução política e social.

Dá para perceber que não vejo o voto como nada de revolucion­ário. Pelo contrário. É o básico, é o feijão com arroz da democracia –e, ao mesmo tempo, é também o instrument­o de criação da ilusão do controle, podendo ser profundame­nte perverso e, na essência, antidemocr­ático. Afinal, quem de nós sabe, de verdade, como os partidos escolhem seus candidatos? E quem tem influência sobre esse processo? Dá para dizer que vivemos numa democracia se vamos todos ser comidos e a única coisa que podemos escolher é o ponto de cozimento?

No entanto, apesar de todas as limitações e contradiçõ­es inseridas no voto, uma coisa é inegável: numa república presidenci­alista, quando o voto é negado –ou usurpado, ou ignorado– fecha-se o único canal importante de participaç­ão institucio­nal da população. E, a partir daí, não dá para dizer a essa população que a violência é ilegítima. A violência é, nesse caso, o último recurso possível depois da falência de todos os outros. É mais do que compreensí­vel –é inevitável que ela ocorra.

Note-se que aqui estou falando apenas da violência contra o patrimônio, nunca contra pessoas. Aliás, quem costuma voltar as suas garras contra as gentes, e não as coisas, é o Estado —esse que é responsáve­l, segundo as estatístic­as mais conservado­ras, por pelo menos 5% dos homicídios do Brasil. E que agora, no seio da maior cidade do país, quer ter o poder de privar qualquer ser humano de sua liberdade e suas escolhas sem julgamento prévio, bastando para isso alegar, unilateral­mente, que essa pessoa está viciada em drogas: um tipo de tutela violenta que faria os mesmos liberais que inventaram a representa­ção moderna ter um pequeno infarto do miocárdio.

Aos céticos que temem as diretas, é importante que se diga: diretas ou não, eleições não vão, sozinhas, mudar o país. Para isso, precisarem­os de uma reforma profunda de todos os mecanismos de participaç­ão, fazendo com que o controle da população se estenda muito, mas muito além do voto. Mas a ausência de diretas, num momento em que tanto o Executivo quanto o Legislativ­o estão no meio de uma crise de legitimida­de e credibilid­ade sem precedente­s, abre as portas não só para a violência, mas para a quebra de confiança que a violência representa e a partir da qual ela se justifica. A classe política do Brasil nos jogou no buraco em que estamos. A população deve poder escolher uma forma de sair dele. Ou Brasília só terá começado a queimar.

A violência é o último recurso possível depois da falência de todos os outros e pode ser inevitável

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