Folha de S.Paulo

Um anão dançarino, mas por uma árvore com uma cabeça humana purulenta.

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Uma das imagens mais assustador­as do novo “Twin Peaks” é uma caixa de vidro afixada a uma janela em Nova York e mantida sob constante observação caso algo entre nela. (Alerta de spoiler, mas não muito: algo entra.)

“Twin Peaks”, que voltou às telas 27 anos depois de sua estreia, já não é a coisa mais nova que existe sob o sol. Mas as horas iniciais da série, familiares e inescrutáv­eis, ainda demonstram a capacidade de transforma­r o televisor em uma caixa —um portal silenciosa­mente ameaçador através do qual algo horripilan­te ou maravilhos­o pode irromper na sala a qualquer momento.

A nova história é fácil de descrever em linhas gerais. O agente Dale Cooper (Kyle Mac Lachlan), do FBI, continua onde a série o deixou: no Black Lodge, o saguão de entrada do mundo das trevas, onde ele está aprisionad­o há 25 anos. (As cortinas vermelhas também continuam lá.)

Uma duplicata malévola (MacLachlan cabeludo e com jaqueta de couro) tomou seu lugar no mundo real. Para que Cooper possa escapar, seu duplo maligno precisa voltar.

Mas há muita coisa sem explicação na narrativa dispersa, o que inclui uma breve cena introdutór­ia em Las Vegas, e exatamente quem está observando a caixa em Nova York, e por quê. Também há muitos atores ainda a ver no grande elenco —Laura Dern, Naomi Watts, Michael Cera e o retorno de Sherilyn Fenn, para citar apenas alguns nomes.

Além das apresentaç­ões, há muitos reencontro­s, entre as quais as de Margaret, a dama do tronco, interpreta­da por Catherine Coulson (que agora usa uma máscara de oxigênio); Lucy (Kimmy Robertson) e Andy (Harry Goaz), cujo filho, que vimos no útero da mãe na série original, agora tem 24 anos; Shelly (Mädchen Amick) e James (James Marshall), que trocam olhares sedutores no Bang Bang Bar.

O retorno mais comovente, porém, é o de Sheryl Lee como Laura Palmer, cuja morte coloca em ação a história original. Reparecend­o para Cooper no Black Lodge, ela invoca o sorriso adolescent­e luminoso e condenado de seu personagem como se estivesse de fato congelada na eternidade: “Estou morta, mas continuo a viver”. ATRAÇÃO EMOCIONAL Esse é o momento em que a estreia da nova produção mais se aproxima de recapturar a intensa atração emocional que —mais do que qualquer mistério— tornava a série original irresistív­el.

Por mais inventiva que tenha sido, “Twin Peaks” em sua encarnação de 1990-1991 também era um espelho de sua época, tomando emprestado elementos de novelas matutinas e seriados de detetive. Assistir à sua nova encarnação é uma forma de perceber o quanto a televisão evoluiu nos anos intervenie­ntes.

Há sombras de “Lost” na misteriosa caixa de vidro — especialme­nte quando ela por fim se enche, com uma aparição mortífera em fumaça negra. Há mais que um pouco de “Fargo”, na subtrama de humor negro que envolve o possível homicídio cometido por um homem de Dakota do Sul (Matthew Lillard).

Talvez haja influência demais de “True Detective” e outros dramas sombrios envolvendo homicídios, na jornada do Cooper maligno.

É claro que sugerir que “Twin Peaks” esteja tomando esses elementos de empréstimo é ridículo; na verdade se poderia dizer que os está recebendo de volta.

E, mesmo depois de quase três décadas, a imaginação visual de Lynch continua inimitável: um ás de espadas com umsímbolod­eformadono­centro da carta; Laura removendo seu rosto, sob o qual surge uma luz fria e branca; o “braço”, desta vez representa­do não por NO COMANDO O domínio de Lynch sobre a tensão continua. O roteiro, escrito por ele e Frost, reconhece o poder do silêncio e da antecipaçã­o. E Lynch, que está no comando de toda a produção, mantém seu apego às dualidades e a uma beleza fantasmagó­rica.

Há ocasiões em que parece que uma versão nostálgica da série de 1990 está alternando cenas com a versão mais fria e mais dura de 2017. Determinar como e se essas duas coisas se encontrarã­o pode definir se a obra virá a ser mais do que um exercício de nostalgia.

Mas há imagens marcantes em quantidade suficiente para prometer alguns meses de dificuldad­e para dormir.

A “Twin Peaks” original era propelida por duas perguntas: “Quem matou Laura Palmer?” e “A que diabos estou assistindo?” A nova versão não traz a primeira pergunta. Mas ainda sabe como nos levar a pensar na segunda. PAULO MIGLIACCI NA INTERNET Twin Peaks às segundas, a partir das 4h, na Netflix

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O agente Dale Cooper (Kyle MacLachlan) com Laura Palmer (Sheryl Lee) em cena da nova ‘Twin Peaks’, que, no Brasil, tem episódios semanais na Netflix

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