Folha de S.Paulo

Abraçado a este mundo

-

RIO DE JANEIRO - Um apartament­o em Ipanema, deixado vago pela morte, há cinco anos, de seu ilustre proprietár­io, foi esvaziado pelos herdeiros e entrou em obras para ser alugado. Dali a pouco, os operários que foram trabalhar nele começaram a perceber coisas inexplicáv­eis. Um martelo colocado em um lugar reaparecia em outro. Os vasos davam descarga por conta própria. As lâmpadas piscavam seguindo um padrão. Os rapazes, apavorados, foram falar com o porteiro —nenhum deles queria ficar lá sozinho.

O porteiro subiu para conferir. Não viu nada de anormal. Mas ouviu —ou pensa ter ouvido— uma tosse, um suspiro, um pigarro, todos lembrando os ruídos produzidos pelo falecido. Ele próprio sentiu sopros gelados vindos das paredes. Mas tinha de tranquiliz­ar o pessoal. Garantiu que não havia nada demais, que eles estavam imaginando. Os operários, a custo, continuara­m a reforma —às vezes, um se demitia, de cabelo em pé. O próprio porteiro deixou de ir ao apartament­o vazio à noite.

A obra ficou pronta e o imóvel foi alugado. O inquilino, um estrangeir­o racional e pragmático, sabia da importânci­a do antigo titular. Foi morar lá, sem desconfiar de nada, e, por muito tempo, não teve do que se queixar. Mas, há pouco, as estranheza­s recomeçara­m. Torneiras abriam. Livros mudavam de lugar. Um quadro amanheceu de cabeça para baixo. E a trilha sonora retomou os pigarros, tosses e suspiros. O inquilino ficou aterroriza­do. Já deve ter se mudado.

Fui amigo do velho morador por quase 50 anos e sei que ele nunca acreditou no outro mundo. Talvez por isto tenha se dedicado a entender e nos desvendar —categorica­mente— o nosso.

É a única explicação. Ao acordar de um estranho sono e descobrir-se morto, não se conformou e se recusa a trocar este mundo por outro que, como ele sempre soube, não existe. ANTONIO DELFIM NETTO

ideias.consult@uol.com.br

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil