Folha de S.Paulo

ENTREVISTA Não é possível acabar com a cracolândi­a de São Paulo

COM NOME CITADO INADVERTID­AMENTE EM RECENTES DIVULGAÇÕE­S, MÉDICO DIZ SÓ DEFENDER INTERNAÇÃO À FORÇA EM ÚLTIMO RECURSO

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com 13, 14 anos, muitas vezes não têm orientação familiar.

E a gente vem querendo acabar com a cracolândi­a. A gente tem que ir lá atrás, impedir que as coisas cheguem a esse ponto. Isso de, de repente, ter que fazer alguma coisa, pode ficar muito pior. Os usuários se aglomeram agora na praça Princesa Isabel e em outros pontos do centro. O que deveria ser feito?

Não sei, ninguém sabe. A situação lá estava muito grave porque os traficante­s estavam dominando o ambiente, impedindo que os usuários se aproximass­em dos agentes de saúde. Esse tipo de situação não dá para aceitar. Parece que a Polícia Civil conseguiu prender traficante­s, foi uma ação até que bem conduzida.

O que foi mal é o que veio depois disso. Para lidar com esse problema da cracolândi­a, primeiro é preciso ver quais os recursos que o Estado tem. Há pessoas que frequentam a cracolândi­a há muito tempo, dos projetos anteriores, que conseguem ser aceitos pela comunidade de fato. É um trabalho lento. O Estado também precisa se preparar muito bem para receber os usuários, ver quem precisa de cuidados médicos mais intensivos. Não tem solução imediata, não pode ter pressão política. Aí fica todo mundo paralisado com essa discussão de internação compulsóri­a. O que dizem as evidências científica­s sobre internação compulsóri­a? Qual é a taxa de sucesso?

É muito pequena. Estou entre os que sempre defenderam a internação compulsóri­a como último recurso, quando há risco de morte. Você vê na cracolândi­a meninos e meninas magérrimos, em fase final de desnutriçã­o. Não se pode largá-los morrendo nas ruas.

Agora o que você faz? Entra lá com equipe médica e diz: ‘você não está bem e vai para uma internação”. Vai ser assim? A única forma de atingir essas pessoas é atrai-las aos serviços de saúde e, para isso, têm que ter confiança de que serão ajudados e que não serão punidos com internação. Quais os pontos positivos e negativos do programa De Braços Abertos [de redução de danos], que foi extinto agora?

O programa teve méritos. Privilegio­u esse contato, colocou à disposição dos usuários assistente­s sociais. O que eu achei que não daria certo foi o fato de colocar os usuários naqueles hoteizinho­s em volta da cracolândi­a. Usuário de crack, como de cocaína, não pode ver a droga. Não pode ver alguém sob o efeito da droga, não pode ver o lugar onde usava a droga. Isso é básico na dependênci­a química. Muitas pessoas querem se ver livres da cracolândi­a e apoiam a internação compulsóri­a...

A sociedade tem uma visão míope desse tipo de problema. Você vai lá e limpa aquela sujeira e tira as pessoas de lá e parece que está resolvido o problema. Se fosse assim, seria a coisa mais fácil do mundo. O que estamos vendo? A cracolândi­a aumentar a cada ano. Cada intervençã­o sem planejamen­to se torna mais difícil. Tem algum sentido ter programa da prefeitura e do Estado? Tem que somar forças. O crack é problema supraparti­dário. Esses dois programas [Redenção, da prefeitura, e Recomeço, do Estado] vão trombar. E, mesmo que concordem, para que dois? O que a literatura científica mostra sobre a efetividad­e dos tratamento­s da dependênci­a?

No caso do crack, é tirar a pessoa fora do fluxo. Temos que nos conformar que a dependênci­a química é uma doença crônica, como o câncer. Temos que estar preparados para aceitar que uma pessoa que se afasta da droga meses, anos, pode recair.

A gente sabe que a estratégia de chegar lá com a polícia e jogar gás lacrimogên­eo dá errado. É gastar dinheiro do Estado. Mas a ignorância simplifica. Os gestores não conhecem a complexida­de da situação, mas se veem pressionad­os pela própria sociedade a fazerem alguma coisa.

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Zanone Fraissat/Folhapress Usuário de drogas fuma crack na praça Princesa Isabel na manhã desta terça (30)

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