O sexo dos anjos
UMA AMIGA que teve paralisa cerebral, com importante grau de comprometimento, anunciou em uma rede social —e chocou parte de seu mundo— que está grávida, feliz e realizada. Um querido casal, ambos com esclerose múltipla, celebra meio ano da chegada do rebento Francisco e tenta driblar com leveza os obstáculos que os outros querem enxergar na nova realidade deles.
Por todo canto, tenho observado o povo prejudicado das partes ou dos sentidos abrindo caminhos para a formação justa e necessária de famílias “malacabadas”. São mulheres barrigudas em cadeiras de rodas, pais meio capengas quebrando a cabeça para arrumar soluções para proteger suas crias. Vive-se hoje uma revolução do acesso ao direito de ter menino.
Até há pouquíssimo tempo, sexo e deficiência era combinação que beirava o esdrúxulo, o improvável. Daí a pensar que essa gente pudesse gerar filhos era sandice, caso de internação compulsória. Esse demérito vinha basicamente da exclusão social, aliada a uma forma errônea de ver cegos, surdos e tortinhos em geral como seres dignos de dó ou aptos a receberem extrema caridade apenas.
Quando parte da sociedade começou a encarar a diversidade humana como característica de vida e somente isso, foi possível para milhares de pessoas sair das catacumbas do isolamento forçado e conquistar espaço na rua, nas escolas, no trabalho, em camas de motel e em corações.
Com o poder de “ser igual que nem gente” em mãos, os quebrados apareceram nas baladas, levaram para jantar a namorada, passaram a pensar seriamente em ter gato, cachorro e filharada.
Com credenciais de anão, zarolho, amputado ou lascado das partes, garanto que é bem menos custoso arranjar uma boa transa e abrir passagem para a conquista de um parceiro de “vida toda” do que conseguir reconhecimento público de que nenhuma característica física ou dos sentidos irá determinar potenciais, inclusive o de botar criança no mundo e saber zelar por ela.
Não vou escrever aqui que é fácil, de boa, lidar com minha biscoita Elis, que veio calibrada para deixar o pai cadeirante em polvorosa durante tarefas simples como escovar os dentes, mas sinto-me plenamente pai mesmo entre uma porção de creme dental espalhada por nossos rostos ou com a escova de dente se tornando aviãozinho.
Não raro, além da decisão de subverter as ditas impossibilidades de viver para ter a “audácia” de gerar novas vidas, pessoas com deficiência precisam assimilar críticas sobre o suposto impacto de transmitir sua condição para futuras gerações, em caso de herança genética.
Penso que cabe, sim, uma discussão social madura em relação ao tema, embora a palavra final tenha de ser dada pelo casal ou pelos indivíduos que resolvam ter filhos com possíveis suscetibilidades de repetirem uma condição de deficiência. O que não avalio como pertinente são sentenças ou avaliações baseadas em preconceito, suposições ou simulações de fatalidades, sofrimentos.
Cada caso tem suas particularidades, e cada família, seu preparo para receber, amar e criar os filhos. Entender a diversidade como condição ajuda a não examinar a realização dos outros com base em fracassos e limitações próprias. Um viva à novíssima geração da resistência à perfeição.
Quando parte da sociedade aceitou a diversidade, milhares puderam ganhar espaço em corações
jairo.marques@grupofolha.com.br