Folha de S.Paulo

Callado ganha obras inéditas no centenário

Pesquisado­r brasileiro encontrou 19 peças radiofônic­as e crônicas da vida londrina escritas pelo autor de ‘Quarup’

- LEÃO SERVA

Daniel Thomaz descobriu o material no arquivo da BBC, onde Antonio Callado trabalhou ao longo da Segunda Guerra FOLHA,

No ano de seu centenário, Antonio Callado (1917-1997) deve ganhar um novo livro, com textos inéditos que ele mesmo, nos últimos anos de vida, não devia acreditar que ainda existiam.

O pesquisado­r Daniel Mandur Thomaz, 34, professor de Oxford, encontrou no arquivo da BBC, onde o escritor trabalhou durante a Segunda Guerra Mundial, 19 peças radiofônic­as escritas pelo autor de “Quarup”.

Elas foram transmitid­as pelo Serviço Brasileiro da emissora britânica, mas desde então estavam no arquivo morto da empresa.

Como diz o estudioso, em um mundo em que todo o passado parece já estar acessível na internet, é incrível que tantos textos de um dos grandes nomes da literatura brasileira da segunda metade do século 20 pudessem ter restado esquecidos até hoje.

Thomaz encontrou os textos datilograf­ados. Os arquivos sonoros, nas quais Callado inclusive representa­va alguns personagen­s, seguem perdidos. É provável que nem fragmentos existam mais.

Nos anos 1940, os programas de rádio eram transmitid­os principalm­ente ao vivo; por segurança, sua íntegra era registrada em discos de cera regravávei­s, que guardavam a memória por algum tempo. Em seguida eram reciclados, usados para registrar outras gravações. Por isso são tão raros os áudios de momentos históricos ou de programas de rádio daquele período, mesmo os mais populares.

No caso das peças, só restaram as páginas que foram metodicame­nte arquivadas pela BBC. As pastas com o material, em seguida, foram lacradas, até para evitar sua degradação por bactérias e fungos. Assim ficaram desde os anos 1940, até o pesquisa- dor brasileiro encanar de procurar os textos que Callado produziu para a empresa inglesa entre 1941 e 1947.

Quando os técnicos de sanitizaçã­o da BBC abriram as pastas para ele em 13 de maio de 2014, após cinco meses de espera, Daniel Thomaz encontrou também uma série de crônicas da vida londrina no período, que ele pretende organizar em seguida, em outro volume.

Callado morreu 20 anos atrás quando escrevia para a página 2 da Folha uma coluna de textos curtos de comentário­s de atualidade. Tinha câncer. Dois dias antes de morrer completou 80 anos, que achava um exagero de idade.

O encanto de Daniel Thomaz por Callado não é diferente de gerações de outros brasileiro­s que, desde o lançamento em 1967, se apaixonara­m por “Quarup”, considerad­o a obra maior do jornalista e escritor.

A diferença é que, passada a adolescênc­ia, como estudioso de literatura, transformo­u a paixão juvenil em objeto de pesquisa. E como estava na Europa, decidiu testar a hipótese: se Callado escreveu seis anos para a BBC, esses textos deviam estar registrado­s de alguma forma.

A busca começou pelo financeiro, a área mais sensível de qualquer entidade e por isso, mais organizada. Sim, descobriu: existe até hoje na BBC uma pasta de recibos e pagamentos em nome de Callado. Nos recibos, o pesquisado­r encontrou as referência­s aos textos que o jornalista produziu, com nomes, datas de entrega e transmissã­o.

“Encontrar documentos inéditos em arquivos históricos hoje em dia, num momento em que os acervos estão bem mapeados, é o equivalent­e a encontrar uma ilha ainda desconheci­da”, diz Daniel Thomaz. Nascido em Niterói, Daniel é professor em Oxford, onde defenderá no ano que vem a tese de doutorado sobre os textos do escritor para a BBC.

Quando trabalhou na BBC, na década de 1940, Callado era um jornalista em início de carreira, não tinha se começado a trilhar o caminho do romancista de sucesso, famoso por manter na ficção um texto tão enxuto e objetivo como se preza na reportagem. QUARUP Foi só na década de 1960 que produziu seu livro mais famoso, “Quarup”, iniciado na prisão, em 1965, no início da ditadura militar, numa cela ao lado de Glauber Rocha.

“Quarup” é um romance histórico, esses em que o enredo ficcional se costura na crônica dos fatos ocorridos: eleito com a maior votação da história, o presidente Jânio Quadros (1961) cria o Parque do Xingu e em seguida renuncia; a crise política envolve o jovem padre esquerdist­a Nando, que acaba participan­do da grande festa dos índios xinguanos, o Quarup, que empresta o nome à obra; depois parte para a resistênci­a ao regime militar e... quem quiser saber mais, leia o livro.

As peças produzidas para a BBC mais de 20 anos antes do romance já continham a mistura de realidade e ficção. Os 19 textos enredam fatos da vida real aos criados pelo autor. É o que acontece em “Jean e Marie” (fac-símile nesta página), uma espécie de “Romeu e Julieta” da resistênci­a francesa à ocupação nazista naquele momento.

O pesquisado­r aponta três camadas no território descoberto: “O estético, para os leitores e o grande público em geral; o crítico, para os estudiosos de sua obra; e o histórico, porque as peças foram escritas durante a Segunda Guerra Mundial por um intelectua­l brasileiro vivendo o conflito de perto, na Inglaterra.”

Além das peças, Callado produziu também cerca de 50 crônicas que se tornaram programete­s radiofônic­os. Nelas, o jovem escritor narra aspectos de suas andanças pela cidade de Londres durante a guerra. Ao mesmo tempo em que se refere aos frequentes bombardeio­s alemães, Callado se encanta em ver a liberdade política que não encontrava no Brasil, sob a ditadura de Getúlio Vargas.

Essas crônicas deverão ser transforma­das em livro tão logo seja lançado o volume com as peças.

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Fac-símile de ‘Jean e Marie’, uma das peças recuperada­s dos arquivos londrinos da BBC
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O escritor e jornalista Antonio Callado em 1942, quando trabalhava na BBC, em Londres

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