Folha de S.Paulo

Liderança

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Ganha tração a tese segundo a qual a Lava Jato teria exposto o fracasso do projeto de liderança brasileira na América do Sul.

Uma das vozes mais influentes nesse debate é Andrés Malamud, da Universida­de de Lisboa. Em artigo recém-publicado no jornal argentino “La Nación”, ele argumenta que, devido à recessão e à corrupção, o Brasil teria perdido o dinheiro e a autoridade moral necessário­s para liderar a região. Sem Forças Armadas devidament­e equipadas, qualquer ambição de liderança apenas seria uma quimera.

À primeira vista, tal análise é atrativa. Seu único problema é estar equivocada.

De fato, durante a Nova República criou-se um projeto estratégic­o para a América do Sul. De Sarney a Lula, todos os presidente­s brasileiro­s seguiram seus ditames.

No entanto, o objetivo de tal política jamais foi o de exercer liderança, se liderança é o processo pelo qual um país custeia instituiçõ­es regionais, provê segurança para os países de seu entorno e compra a adesão de seus vizinhos mais fracos no intuito de ter seguidores. O Brasil da Nova República nunca dispôs dos recursos materiais para algo assim.

Antes, o projeto regional buscou satisfazer outras necessidad­es do sistema político brasileiro. Em primeiro lugar, a política regional serviu para reduzir os custos e os danos causados pela fricção com uma vizinhança complexa e difícil. Os países do entorno sempre foram vistos em Brasília como fonte de problemas atuais ou potenciais, e a política externa buscou limitar esses atritos sem grandes investimen­tos.

Além disso, a diplomacia buscou regionaliz­ar o capitalism­o brasileiro a favor de grandes conglomera­dos nacionais. Grupos públicos e privados do Brasil viraram credores, investidor­es, compradore­s e vendedores de alto perfil em todos os países da região, contando para isso com subsídios do BNDES e do Banco do Brasil. A diplomacia serviu para facilitar esse processo.

Por fim, a diplomacia sulamerica­na foi um instrument­o a serviço de sucessivos presidente­s brasileiro­s na obtenção de apoio e legitimida­de para suas respectiva­s batalhas em Brasília. Sarney usou a relação com Alfonsín para ganhar força diante dos militares. FHC usou o Mercosul para garantir uma política antiinflac­ionária perante um Senado arredio. E Lula financiou as campanhas de Hugo Chávez para consolidar posições favoráveis ao PT numa região ideologica­mente dividida.

Segundo a retórica oficial, o Brasil concebe a América do Sul como âncora de sua projeção global. Mas é só retórica. A crise atual não golpeia uma suposta liderança regional que nunca existiu. Ela apenas expõe os mecanismos mais profundos de uma estratégia que vive hoje seu pior momento.

MATIAS SPEKTOR

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