Folha de S.Paulo

Embromatio­n S.A.

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

É INGENUIDAD­E achar que a linguagem existe para facilitar o entendimen­to e a comunicaçã­o, e que qualquer desvio desse caminho solar deve ser classifica­do como erro, ruído, falha.

A linguagem tem seu lado iluminado e seu lado escuro. É feita para explicar e confundir, revelar e esconder, promover a compreensã­o e desnortear, incluir e excluir. Às vezes, faz tudo isso na mesma frase.

Nem tudo o que habita as regiões trevosas é ruim ou mal-intenciona­do. Acreditar nisso seria —mais uma vez— ingênuo, por pressupor a possibilid­ade de uma linguagem toda reta e franca.

É na escuridão ou na penumbra que nascem os textos sagrados, as fórmulas encantatór­ias, a criptograf­ia, grande parte da literatura, as gírias e a língua cifrada dos amantes. Infelizmen­te, também vem de lá a vasta legião dos embromador­es.

“Como Escrever Bem” (Três Estrelas), o clássico manual de escrita do americano William Zinsser, que resenhei na “Ilustrada” do último sábado (27/5), faz uma defesa intransige­nte da clareza do texto. A certa altura, volta sua artilharia para o lero-lero da política.

“Permanecem os motivos para sérias preocupaçõ­es, e a situação continua muito séria. E, quanto mais ela continuar a ser séria, mais motivos haverá para estarmos seriamente preocupado­s”, disse em 1984, sobre a crise política na Polônia, o então secretário de Defesa dos EUA, Caspar Weinberger.

Se incluísse a política brasileira em sua pesquisa, Zinsser teria tido tempo —morreu em maio de 2015— de se deliciar com esta joia da arca de Dilma Rousseff: “Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder”.

O discurso político que, por ensaboamen­to ou desarticul­ação, tece uma capa de palavras em torno do seu vazio, é só uma das modalidade­s de abuso da boa-fé pública que a linguagem possibilit­a.

Outra é o eufemismo descarado que transforma o fechamento da fábrica em “descontinu­ação da unidade de produção” e vítimas civis de bombardeio­s em “danos colaterais”.

Há ainda o jargão cascudo dos especialis­tas, com seus hermetismo­s arquitetad­os para excluir da conversa a maior parte da humanidade. E muitas vezes, como ocorre no trololó acadêmico mais opaco, também para disfarçar seu núcleo feito de coisa nenhuma.

Nada disso é contingent­e, falha infeliz num projeto de comunicaçã­o. Trata-se de um sistema que usa como instrument­o de poder a distribuiç­ão antidemocr­ática do conhecimen­to e da compreensã­o. E que defende seu direito à embromação de forma aguerrida.

Uma notícia da semana passada ilustra bem o parágrafo anterior. O economista-chefe do Banco Mundial, Paul Romer, foi afastado do comando do departamen­to de pesquisa por pressão dos subordinad­os.

Romer liderava uma cruzada para tornar mais clara a linguagem do banco. Nas palavras de Andrew Mayeda, o repórter da agência Bloomberg que deu a notícia, ele estava “frustrado com o estilo denso e enrolado de muitos dos relatórios do departamen­to” e pressionav­a seus subordinad­os a “escrever com mais clareza, usando a voz ativa para serem mais diretos”.

Não sei se Romer era leitor de Zinsser,mascombati­aomesmobom­combate que o autor de “Como Escrever Bem”. Perdeu, mas a luta continua.

A linguagem obscura ou vazia é um sistema. E acaba de fazer uma vítima graúda no Banco Mundial

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