Folha de S.Paulo

DEPENDÊNCI­A

Prefeitura e Estado dependem de agentes sociais e de saúde para levar usuário de crack a internação; em um dia, só 5 de 156 aceitaram (e 3 ainda desistiram)

- LEANDRO MACHADO

DE SÃO PAULO

Dois grupos travam um embate silencioso na cracolândi­a, no centro de São Paulo. Nessa batalha, um dos lados tenta transpor uma parede que não é física e enfrenta uma desconfian­ça diária.

Cada usuário de crack é uma barreira, e esse é um dos principais desafios dos agentes sociais e de saúde que tentam convencer os dependente­s químicos do local a participar de algum tratamento.

A solução da Prefeitura de São Paulo e do governo do Estado para sanar a crise depende principalm­ente desses agentes —a maioria deles ganha em torno de R$ 1.400.

Essa tropa do convencime­nto é a única que entra na praça Princesa Isabel, no centro paulistano, que virou o novo ponto da cracolândi­a após a dispersão dos dependente­s da antiga área.

O êxodo ocorreu a partir do dia 21, após uma operação policial comandada pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB) e seguida de intervençõ­es da gestão tucana de João Doria.

A prefeitura reconhece a dificuldad­e. Na sexta (26), por exemplo, os agentes fizeram 156 abordagens. Apenas cinco pessoas se dispuseram a se internar —três deles desistiram na última hora.

Às pressas, a gestão Doria pediu à Justiça autorizaçã­o para buscar e apreender à força viciados na cracolândi­a. O Tribunal de Justiça negou. A Promotoria comparou a iniciativa da prefeitura a uma tentativa de “caçada humana”.

Nesta semana, a reportagem conversou com agentes ligados ao município ou ao Estado que atuam na região. Os nomes citados são fictícios, porque eles são proibidos de dar entrevista­s.

A tropa se divide em três grupos: 1) assistente­s sociais ligados à prefeitura, que vestem colete azul e verde; 2) agentes municipais de saúde, de azul; 3) conselheir­os de saúde, de jaleco branco —esses fazem parte do programa Recomeço, da gestão Alckmin.

A maioria é empregada de ONGs ou organizaçõ­es sociais de saúde que mantêm contratos com o poder público. As abordagens começam por volta das 8h. Na turma da prefeitura, são oito grupos de seis pessoas cada —nas tendas de atendiment­o, há psicólogos.

“Aprendi que cada um deles tem seu tempo. Não é o que você quer, mas o que ele quer, pressionar atrapalha”, diz Rosana, 40. Ela conta que há seis anos convenceu um Fonte: Prefeitura de São Paulo rapaz a se internar. Nesta semana, encontrou o jovem novamente, usando crack.

Os agentes não usam celular dentro do “fluxo” —onde se concentra o consumo de crack. Entre os usuários, há desconfian­ça de estarem sendo gravados ou fotografad­os. Repórteres já foram roubados e agredidos próximos à praça.

“Na cracolândi­a se desconfia de tudo porque o usuário se sente oprimido por todos os lados: pela polícia, pelo traficante, pela mídia que mostra a cara dele, às vezes pela própria família que cobra reabilitaç­ão”, afirma Roberto, 30, agente de saúde que já foi viciado em crack.

“A maioria sabe que a vida ali é ruim. Mas é um mundo a parte e, por incrível que pareça, eles se sentem acolhidos por eles mesmos. Você precisa convencer que o prazer da droga pode ser trocado por outra coisa”, diz Roberto.

“Você tem de criar um vínculo, dar bom dia, apertar a mão. Eles gostam de apertar a mão”, afirma Joana, 50, conselheir­a do Recomeço.

“Mas quebrar a barreira e convencer o cara é difícil, leva tempo, você fica frustrado porque às vezes ele é uma pessoa de manhã e outra à noite. O crack muda o humor.”

Para os agentes, a maioria das internaçõe­s ocorre não pelo convencime­nto, mas porque o usuário procura o serviço. “Acontece também de ele querer tratamento agora, porque está passando mal, com fome e frio. Quando chega na hora, bate a abstinênci­a e ele desiste”, diz Joana.

Segundo a prefeitura, 92 pessoas foram internadas voluntaria­mente desde o início da operação —o “fluxo” da praça Princesa Isabel já reuniu cerca de 900 usuários.

Nesta terça, um usuário de 43 anos entrou em uma das tendas. Descalço e coberto com um capuz, disse que queria se internar. “Desde quando você usa drogas?”, perguntou uma agente, seguindo um roteiro. “Desde os 12”, ele respondeu. “Quais drogas?”, ela insistiu. “Todas”, ele disse.

“Você ouve vozes?”. “Só quando estou drogado”. Ele ficou incomodado com as questões. “Por que a burocracia?”. Levantou e foi embora. Agentes de saúde foram atrás.

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Zanone Fraissat/Folhapress Assistente­s sociais da prefeitura que atuam com dependente­s químicos na cracolândi­a, concentrad­a agora na praça Princesa Isabel, no centro de SP

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